19/04/2008

Recordações como gargalhadas

As recordações são como as gargalhadas, começamos por sorrir, rir e daí a pouco as gargalhadas ecoam sonoras, dando expressão ao contentamento da nossa alma em voltar as vestir as roupas de tempos mais felizes.
Um comentário deixado neste meu album de recortes por Frioleiras ( cujo perfil sensivel e de bom gosto que pude apreciar nas suas fotos, não me deixou pistas suficientes para a minha fraca memória identificar) fez-me lembrar do mundo que cabia no Largo da Igreja, o coração do Fundão, quando na minha idade não se encaixavam ainda preocupações, queixumes e solidões.
Era grande e cheio de vida. Hoje, pergunto-me se encolheu, se mirrou, se morreu... Para mim, era o sítio onde havia de tudo, onde tudo era perfeito. Agora está sem alma e sem cor.
Ou talvez porque nesse tempo, via-o com os olhos do coração...
A começar pelo Café "Misérias", nome que alguém lhe chamou uma vez e ali mesmo se fez o baptismo, porque nunca mais foi conhecido por outro. Era enorme, lá ao fundo tinha uma porta ao lado balcão, que dava para uma saleta. Fui muitas vezes aí brincar com a filha dos donos do café, minha colega na escola. Não sei porque lhe deram esse nome, pois era espaçoso, com enorme montra para o Largo por onde entrava muita luz. Talvez tenha sido alguma característica de poupança dos donos! Depois a mercearia onde a minha mãe comprava o café acabado de moer. O cheiro do café está na minha memória como se tivesse acabado de lá entrar agora mesmo.
O meu pai contava a história do homem que foi lá e pediu 5 tostões de café. O dono da mercearia chamou o empregado e disse:- Fernando, dá aí o café a cheirar a este senhor!
Muitos anos fiz aquela bebida dos deuses à moda do Fundão. Tinha uma grande cafeteira de água a ferver, da qual separava o equivalente a um terço. Juntava 2 ou 3 colheres bem cheias de café e mexia bem. Depois voltava a deitar a água que separara e esperava uns minutos. Era uma delícia, com bolo de azeite e queijo da serra...
No primeiro andar do "Misérias", era o consultório do Dr Mendonça, que tinha o diploma num grande quadro, com moldura a condizer com a fita amarela e o selo da Universidade. Era um diploma pomposo e eu adorava ir lá só para o rever!
Outra amiga com quem dividi muitas horas da minha vida, mesmo depois de adulta, era a Ana Maria. O pai tinha ali também uma mercearia em que a especialidade era o bacalhau. Eu via, com admiração, o pai da Ana cortar o bacalhau naquela guilhotina enorme e caírem os bocados ao lado, com o corte bem certo e a medida exacta- era o Sr. Manuel, irmão da Mimila, sorridente e bonitaço nos seus olhos azuis.
Ao lado e antes da capela da Misericórdia, era o consultório do médico de todos nós, o Dr. Amaral. Pai das minhas amigas, médico de todos os da minha geração. Era médico de clínica geral, mas (emende-me quem saiba mais do que eu) arrancava dentes, fazia partos, sei lá... Subir aquelas escadas era intimidante, tenebroso. Não sei porquê, talvez pela ideia de se ir ao sr. doutor!
No lado oposto, o melhor da festa- a Electrogardunha. Quando apareceu a televisão no Fundão, esta casa de electrodomésticos colocou uma na montra. Muita gente se juntava na rua para ver, embora o programa mais frequente fosse a foto de um riacho com árvores nas margens e a palavra Interlúdio como legenda. Eu ia lá espreitar o Franjinhas, um cão de pano com franja de lã, que falava!!!
Ali mesmo ao lado, vivia a Céu (o pai tinha uma loja de cabedais) e mais à frente a Anita (constantemente mudava de casa, embora todas fossem grandes e bonitas).
As árvores faziam a esplanada para as nossas conversas de adolescentes, a casa de electricidade exibia os "single" e os "LP" que estavam no top e a torre da Igreja dava as horas repetidas, lembrando a recomendação para a hora de estar em casa.

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