27/05/2008

Fundão em desânimo

Atravessei a rua e fui ao carro deixar o saco de viagem.
Ia tomar café e embora só regressasse à minha casa no fim da tarde, aproveitava a ida à rua para levar já algumas coisas.
Um senhor, com idade aproximada da minha, parou, olhou-me e disse: - "Já viu o deserto em que está o Fundão? Não se vê movimento na rua."
Perante a minha admiração, explicou: - "Não me conhece, mas eu conheço-a bem. É a filha do Sr Salvado. Conheço-a desde muito pequena. Eu sou da família do... Olhe para esta terra, sem viva alma nas ruas. Que tristeza!"
Hoje já não sei o nome do tal senhor, mas lembro-me do seu olhar, auscultando as ruas desertas, numa tarde de domingo.
Fui tomar café ao centro comercial. Não havia em cada loja ninguém além do seu proprietário.
Não havia clientes, não havia visitantes.
Na pastelaria só a empregada, eu e meia dúzia de bolos. "Não há necessidade de colocar mais na vitrine, pois não se vendem" - explicou-me ela.
O Fundão está triste e desanimado! As pessoas do Fundão dão vida ao centro comercial da Covilhã, às esplanadas da Ciudad Rodrigo e aos supermercados situados nos arredores.

18/05/2008

Maçãs de todas as cores

A Mariazinha, minha prima direitíssima, já que o pai era irmão do meu pai e a mãe, irmã da minha mãe, tinha fama de ser uma criança muito bonita e muito inteligente.
O meu pai falava dela sempre com o enlevo de um primeiro amor (era a primeira sobrinha).
Um dia, a família foi passear e a Mariazinha ia feliz.
A mudança de ares abriu o apetite da criança, que começou a sentir um ratito no estômago.
Quando atravessaram uma cidade, tiveram de parar numa rua mais movimentada e mesmo ao lado da janela por onde a Mariazinha espreitava a paisagem, estava uma mercearia com frutas expostas à porta. As maçãs verdes, amarelas, vermelhas e rosadas que brilhavam ao sol, sorriram e piscaram o olho à minha prima. Foi então que ela, com a cabeça fora da janela, gritou:
-Oh Machã, machã, vem cá!

Lembrar...

A Mimila contava-me muitas histórias e duma forma, que só ela sabia.
Não há dia nenhum em que não pense nela, por causa de um lugar, de um objecto, de uma pessoa ou das suas histórias, que me repetia vezes sem conta e eu não me cansava de ouvir, pois traziam sempre qualquer pormenor novo.
Além disso, ela própria se achava graça. "Fazia a festa e deitava os foguetes", como costumava dizer enquanto ria com gosto.
Contava que a filha, a Teresa, tinha muita imaginação e de vez em quando lá se "saía com uma".
Um dia chegou a casa muito eufórica e disse: "Minha mãe, vi um avião no céu a voar muito baixinho. Quando eu andava, ele andava. Quando eu parava, ele parava."
A Mimila admoestou-a: "Isso pode lá ser, sua maluca. Onde é que já se viu uma coisa dessas? Ai, ai. Não se dizem mentiras."
A Teresa ficou ofendida e empenhou-se em que a mãe acreditasse, pelo que voltou a afirmar com convicção: "É verdade, minha mãe, eu andava e o avião andava, eu parava e o avião parava. E voava tão perto, tão perto, que eu até consegui ver o cãozinho."
Parou de bordar, olhou admirada para a filha e só conseguiu perguntar: "O cãozinho!!! Qual cãozinho?"
A Teresa, com os olhos postos na mãe e a pensar que já estava quase ganha aquela batalha, respondeu muito alvoroçada: - O piloto, minha mãe. Até vi o piloto.
A Mimila riu e compreendeu que a filha não mentia... imaginava, associando ideias.
(Piloto, Bobi e Lassie eram os nomes mais frequentemente dados aos cães, naquela altura. Agora colocam nomes de pessoas aos cães e já me tenho confundido, quando ouço falar do Adolfo ou do Sebastião!)
Recordo como achava lindo a Teresa chamar "minha mãe" ou a Mimila falar do marido dizendo "o meu homem". Penso que ainda se fala assim no Fundão, pelo menos nas pessoas que não passam férias no Brasil ou em Cuba.
Quando alguém dizia "o meu marido", havia logo quem brincasse... "o meu marido, foi ao mar e ficou encolhido!"
E eu ainda gosto de ouvir dizer "o meu homem".
(Esta foto mostra o que eu via da varanda da sua casa, varanda onde passámos muito tempo juntas. O marido era o proprietário de um dos táxis que se vêm frente ao edifício. No r/c funcionava a praça e no 1º andar, o casino.
O jardim com o pelourinho, era o palco de todas as nossas brincadeiras.
Lembrar, sabe bem.

17/05/2008

Boa disposição

Muitos anos sem o convívio com os fundanenses genuínos, fez com que me esquecesse de palavras engraçadas que se dizem por aqui. Ultimamente, desde que venho cá com regularidade, tenho ouvido algumas, que relembro com saudade.
Hoje fui ao Centro Comercial mesmo ao lado da casa da minha mãe, para comprar pão.
Estava a ser atendido um casal muito risonho e eu esperei, como é normal.
Entretanto a senhora dizia: Ai menina, parece-me que o pastel de nata se está a rir para mim, parece que diz "comei-me, comei-me", o melhor é fazer-lhe a vontade.
A empregada riu-se e foi buscar o pastel de nata.
A senhora voltou a dizer: Olha para isto... tão airoso, até era pecado não o atender!
Riram-se todos.
Preparava-se para comer o bolo, quando disse em laia de justificação: Temos que levar a vida a rir!
A empregada, já a servir o meu café, respondeu-lhe : Tristezas não pagam dívidas.
E a senhora pronta a "fazer a vontade" ao pastel de nata, disse: Se pagassem, andávamos todos monos.
Lembrei-me de ouvir chamar a alguma criança que amuara- "Está feita mona!"
Achei graça e ri também.

03/05/2008

Rua da Cale

Fundão, Rua da Cale.
Rua estreita, de casas velhinhas, lojas pequenas, que começa perto do Largo da Igreja e acaba no Largo das 8 Bicas.
Numa pequeníssima lojinha, encontrei as linhas de boa qualidade, que procurava para fazer uma renda especial.
Uma mercearia à moda antiga, vende os biscoitos tradicionais do Fundão, embalados como as regras modernas exigem, mas tenros e com o sabor dos tempos em que era criança.
Na loja dos tecidos a metro, ainda aceitam dar uma afinação à máquina de costura Singer, oferta da avó Helena e que continua muito útil, 30 anos depois.
Lá ao cimo, na loja de móveis, vê-se a mesma arrumação de há 50 anos, onde peças antigas em 2ª mão, verdadeiras raridades que eu adoro, permanecem encavalitadas, aproveitando todos os centímetros de espaço existente tanto em largura, como em altura. São arranha-céus de cómodas, mesinhas, cadeiras e bancos.
A taberna de portas gémeas de empurrar, banco corrido encostado a uma das paredes, balcão de madeira escura e pouca luz, onde continuam a servir as sardinhas em molho de escabeche, os quadradinhos de bacalhau frito e os peixinhos da horta (feijão verde frito com polme de ovo) para acompanhar o "copito", que aguça a conversa no fim da tarde, é o ambiente preferido dos que não gostam de beber "finos" e comer tremoços salgados na esplanada, nem de falar de política.
O fotógrafo deixou a sua arte aos filhos, que ainda expoêm na velha montra, as fotografias de casórios e primeiras comunhões, em poses solenes.
Havia ali uma mercearia de enchidos e queijos da serra, em que o proprietário era tratado por "Fala-Barato". Hoje, em vez dos aromas do presunto e do salpicão acompanhados com conversa amistosa, sobressaem t-shirts com desenhos de banda desenhada americana, em tons escuros e fluorescentes.
Na Rua da Cale as pessoas caminham devagar, de braço dado, olham as pequenas montras com atenção, cumprimentam os comerciantes a quem perguntam por um qualquer familiar doente e escolhem, experimentam ou trocam o que finalmente se decidiram comprar, porque não combina com o que têm em casa.
É um restinho do Fundão antigo, onde não há promoções e filas para a caixa, onde não há parque de estacionamento, nem se paga com cartão, onde as pessoas se conhecem, se falam, se desejam boas melhoras ou boa saúde.
As grandes superfícies, as lojas irmãs de tantas dezenas por esse país fora, os carrinhos de meter a moeda e os sacos com publicidade, estão no outro lado do Fundão. No bairro da indiferença e do dinheiro de plástico, dos excessos e do desnecessário, das utilidades e das futilidades.
Na Rua da Cale os passeios são estreitos, como estreita é a própria rua, as casas são pequenas tal como os lucros dos seus proprietários, o movimento é lento, dando tempo para uma troca de palavras, mas o ambiente é familiar e o sorriso franco.