20/04/2008

Ecos

É estranho recebermos notícias de pessoas com quem não temos contacto há muito tempo, por terem lido as nossas palavras nestes recortes. Estranho, porque não imaginamos quem abre o nosso diário, mas também muito bom.
Recebi um comentário de alguém que pensava conhecer-me e me enviou algumas pistas, para saber se eu a reconheceria.
Fiquei confusa por causa de algumas fotos do seu blog, em que aparece uma mulher muito bonita, mas jovem demais para se lembrar da minha adolescência.
Enviou-me outras pistas, o que agradeço, pois foi muito agradável para mim percorrer os caminhos de volta e ir tropeçando em memórias que tinham passado um pouco diluídas nas paisagens mais desfoscadas pelos anos.
A Manela era mais uma das amigas que vivia no Largo da Igreja. Compreendo porque hoje o velho Largo parece morto... Tantos jovens tinham mesmo que fazer efervescência na calçada de granito, nas paredes de cantaria.
Levantar cada pedra do seu blog, onde estão escondidas obras de arte em fotos, em gravuras e em sentimentos, deram-me alguns minutos de muito prazer e deixaram-me pesar quando chegaram ao fim.
É muito bom ver os magníficos caminhos percorridos pelas pessoas da nossa terra.
Boa terra e boas sementes... dão boas colheitas!

19/04/2008

Recordações como gargalhadas

As recordações são como as gargalhadas, começamos por sorrir, rir e daí a pouco as gargalhadas ecoam sonoras, dando expressão ao contentamento da nossa alma em voltar as vestir as roupas de tempos mais felizes.
Um comentário deixado neste meu album de recortes por Frioleiras ( cujo perfil sensivel e de bom gosto que pude apreciar nas suas fotos, não me deixou pistas suficientes para a minha fraca memória identificar) fez-me lembrar do mundo que cabia no Largo da Igreja, o coração do Fundão, quando na minha idade não se encaixavam ainda preocupações, queixumes e solidões.
Era grande e cheio de vida. Hoje, pergunto-me se encolheu, se mirrou, se morreu... Para mim, era o sítio onde havia de tudo, onde tudo era perfeito. Agora está sem alma e sem cor.
Ou talvez porque nesse tempo, via-o com os olhos do coração...
A começar pelo Café "Misérias", nome que alguém lhe chamou uma vez e ali mesmo se fez o baptismo, porque nunca mais foi conhecido por outro. Era enorme, lá ao fundo tinha uma porta ao lado balcão, que dava para uma saleta. Fui muitas vezes aí brincar com a filha dos donos do café, minha colega na escola. Não sei porque lhe deram esse nome, pois era espaçoso, com enorme montra para o Largo por onde entrava muita luz. Talvez tenha sido alguma característica de poupança dos donos! Depois a mercearia onde a minha mãe comprava o café acabado de moer. O cheiro do café está na minha memória como se tivesse acabado de lá entrar agora mesmo.
O meu pai contava a história do homem que foi lá e pediu 5 tostões de café. O dono da mercearia chamou o empregado e disse:- Fernando, dá aí o café a cheirar a este senhor!
Muitos anos fiz aquela bebida dos deuses à moda do Fundão. Tinha uma grande cafeteira de água a ferver, da qual separava o equivalente a um terço. Juntava 2 ou 3 colheres bem cheias de café e mexia bem. Depois voltava a deitar a água que separara e esperava uns minutos. Era uma delícia, com bolo de azeite e queijo da serra...
No primeiro andar do "Misérias", era o consultório do Dr Mendonça, que tinha o diploma num grande quadro, com moldura a condizer com a fita amarela e o selo da Universidade. Era um diploma pomposo e eu adorava ir lá só para o rever!
Outra amiga com quem dividi muitas horas da minha vida, mesmo depois de adulta, era a Ana Maria. O pai tinha ali também uma mercearia em que a especialidade era o bacalhau. Eu via, com admiração, o pai da Ana cortar o bacalhau naquela guilhotina enorme e caírem os bocados ao lado, com o corte bem certo e a medida exacta- era o Sr. Manuel, irmão da Mimila, sorridente e bonitaço nos seus olhos azuis.
Ao lado e antes da capela da Misericórdia, era o consultório do médico de todos nós, o Dr. Amaral. Pai das minhas amigas, médico de todos os da minha geração. Era médico de clínica geral, mas (emende-me quem saiba mais do que eu) arrancava dentes, fazia partos, sei lá... Subir aquelas escadas era intimidante, tenebroso. Não sei porquê, talvez pela ideia de se ir ao sr. doutor!
No lado oposto, o melhor da festa- a Electrogardunha. Quando apareceu a televisão no Fundão, esta casa de electrodomésticos colocou uma na montra. Muita gente se juntava na rua para ver, embora o programa mais frequente fosse a foto de um riacho com árvores nas margens e a palavra Interlúdio como legenda. Eu ia lá espreitar o Franjinhas, um cão de pano com franja de lã, que falava!!!
Ali mesmo ao lado, vivia a Céu (o pai tinha uma loja de cabedais) e mais à frente a Anita (constantemente mudava de casa, embora todas fossem grandes e bonitas).
As árvores faziam a esplanada para as nossas conversas de adolescentes, a casa de electricidade exibia os "single" e os "LP" que estavam no top e a torre da Igreja dava as horas repetidas, lembrando a recomendação para a hora de estar em casa.

12/04/2008

Sobressair

Por falar do meu avô Leal...
O pai da minha mãe era o único filho homem, dos quatro que meu bisavô teve. A tia Rita, A tia Delfina e a tia Celeste eram as suas irmãs.
Era uma pessoa com estudos e com bens. Andou por fora, como diziam no Fundão e quando regressou era um solteirão no meio das mulheres.
Casou com 50 anos, com a minha avó, ruiva, de pele muito branca e com 25 anos, metade da sua idade.
Faleceu no ano em que eu nasci e só o conheço pelas fotografias.
Contam que numa terra distante, ao verem um homem tão alto, se admiraram.
O meu avô respondeu-lhes -"Lá na minha terra, sou o mais baixinho de todos!"
Ao que eles exclamaram -"Credo, vem da casa do diabo!"
Hoje o meu avô não daria tanto nas vistas...

Conchas de prata e laços

Perto da nossa casa, em frente do Café Aliança, havia uma ourivesaria propriedade do Sr Saraiva, mais conhecido por Saraivinha, por não ter mais de 1,40 m de altura.
Era casado com uma senhora igualmente pequenina, ou até um pouco mais baixa que ele.
Lembro-me de os ver na rua, de braço dado, dando passinhos pequeninos que me faziam lembrar as gueixas que vira no cinema.
Parece que não gostava que o tratassem por Saraivinha, mas as pessoas já o tratavam assim há tanto tempo, que até eram capazes de jurar que o seu nome era aquele.
Um dia eu precisei de uns elásticos para um trabalho da escola e a minha mãe disse-me que fosse pedir ao Saraivinha, pois para aquele trabalho ficavam bem os elásticos que ele usava para fechar as caixinhas do ouro. Mas a minha mãe recomendou-me logo que o tratasse por Sr. Saraiva.
Eram 7 ou 8 passos até lá e mesmo assim repeti o nome várias vezes para não me esquecer.
Na loja havia uma senhora a comprar qualquer coisa para oferecer não sei a quem.
Enquanto esperava, reparei nas coisas tão bonitas que ele tinha na vitrine, à altura dos meus olhos. Havia uma concha em prata e ao lado uma pombinha com pérolas nas asas. Atrás, uma coroa de folhinhas com pérolas também. Um laço com duas pontas, tinha ao meio uma pedra azul, cor do céu, que eu achei ser a mais bonita de todas.
De repente, ouvi uma voz a chamar-me e fiquei atrapalhada. Tinha-me distraído e esquecido completamente do que me trouxera ali.
"-Sr. Saraivinha, vinha pedir se me podia dar 2 elásticos para fazer um trabalho da escola, por favor."
Com ar de enfado, abriu uma gaveta, tirou dois elásticos e deu-mos.
Agradeci e saí a correr envergonhada, por me ter atrapalhado e dito o nome que ele detestava.
Quando olhei para os elásticos, fiquei surpreendida por serem tão pequeninos. Mal estiquei o primeiro, saltou-me das mãos e desapareceu.
No Fundão, um dia houve um jogo de futebol de solteiros contra casados, contaram-me.
Os guarda redes da equipa dos casados era o Saraivinha e da equipa dos solteiros, era o meu avô Leal, que media 2,02m de altura.
Mas... os homens não se medem aos palmos! Não me contaram foi se houve golos...

08/04/2008

O n.º 10

Nós morávamos no Largo José Barata, nº10, agora de novo com o seu nome primeiro - Largo da Praça Velha. Era uma casa grande, com r/c, 1º e 2º andar, que dava para duas ruas.
Muito da minha infância ficou entre as pedras que tiraram daquela casa, para construir uma outra, descaracterizada, pensada apenas para exposição de móveis.
Quando entrei na escola, já lá vivíamos. Todas as divisões me lembram histórias engraçadas.
Tinha janelas altas, com uma pequena grade de ferro trabalhado a 1/4 da altura e duas portadas.
A porta dava acesso a uma escada que levava ao 1º andar. Ao cimo da escada, o corredor com portas de um lado e doutro.
Mais à frente estava a escada para o 1º andar e outro corredor mais pequeno para a sala de jantar, a cozinha e a marquise a toda a largura da casa.
A marquise dava ainda para uma varanda e para o quintal. Era ali que nós gostávamos de brincar e era nesse quintal que habitualmente nos tiravam as fotografias a franzir os olhos com o Sol.
Na Primavera, os beirais do telhado enchiam-se de ninhos de andorinhas e em cada entardecer os fios da electricidade serviam de baloiço às tão graciosas aves.
Nos domingos ia à Missa com a minha mãe e no regresso tinha de vestir o bibe para não sujar a roupa de ver a Deus. Tinha vários bibes, mas todos do mesmo género, com folhos nas alsas, nos bolsos e a rematar a saia, com histórias bordadas a linhas coloridas. Recordo a da Carochinha, que encontrou um tostão quando varria a casa e foi para a janela procurar com quem casar.
"- Quem quer casar com a Carochinha que é linda e engraçadinha e tem um tostão na caixinha?"
Então, sentava-me no peitoril da janela, donde atirava algodão em farrapinhos, que as andorinhas apanhavam em voo rápido.
Era uma casa especial. Apesar de já não estar lá, continua a povoar as lembranças da minha infância.

Amália

Diziam, no Fundão, que Amália Rodrigues tinha lá nascido. Lembro-me de ter lido em qualquer lado, que ela era Lisboeta. No entanto o meu pai afirmava que a grande fadista vivera com os pais e irmãs no Largo da Fonte das 8 Bicas, numa casa com dois degraus de granito, que me mostrava cada vez que lá passávamos.
Contava também, que a via muitas vezes em Alcântara, quando esteve na Marinha. Podia não ser ela, pois as irmãs são muito parecidas, mas sentia muito orgulho dessa proximidade com a sua Diva.
Na casa da quinta, no beirado por cima da janela do quarto dos meus pais, havia um meio cano que encaminhava as águas da chuva. Todos os anos, na Primavera, um passarinho fazia ali o ninho. Começava a cantar assim que o sol ameaçava aparecer no horizonte.
Por isso o meu pai baptizou-o com o nome de Amálio, rindo em gargalhada franca, em que mostrava os dentes brancos e certinhos, de meter inveja.
Era o meu pai que nos acordava todas as manhãs, nos dava o pequeno almoço e nos levava para o colégio, enquanto a minha mãe ficava mais um bocadinho na cama. Ela sempre gostou mais de fazer serão, ao contrário do meu pai, que mal se sentava, adormecia.
Então o passarito, logo de madrugada, cantava que se desunhava. Só que a minha mãe queria dormir...
Depois de muitos protestos sem resultado (o Amálio não entendia essas coisas de ficar na cama a "dormir à pressa", como nos dizia o meu pai quando lhe pedíamos mais uns minutinhos na hora de levantar) a minha mãe pediu-lhe para deitar abaixo o ninho do incómodo hóspede. Pediu várias vezes, mas o meu pai, entre uma gargalhada e uma resposta de "está bem", ia adiando o sacrifício, até que o Amálio partia de novo com a sua prole de tagarelas e deixava os inquilinos descansar.
Plantei uma árvore no jardim desta casa e também aqui um passarinho vem sempre na Primavera fazer ninho. É mesmo em frente do meu quarto e todas as manhãs o ouço cantar e conversar com a sua eleita e os seus rebentos.
Ontem estava um temporal terrível e eu só ouvia a chuva bater na grade da varanda. O meu Amálio estava caladinho e aninhado, calculo eu, no fundo morno do seu ninho.
Fez-me falta a sua cantoria.
Hoje, voltou a sorrir o Sol, embora tímido e em aparece-esconde. De novo o Amálio me fez companhia, cantando bem afinado para me dar forças para ir trabalhar.
O meu amor por ele foi uma das razões porque o meu pai sempre se fez esquecido do pedido de despejo. Quem sabe não me seguiu desde os tempos da quinta, através dos seus filhotes e dos filhotes deles? A Natureza é sábia e encaminha os seus filhos como mãe cuidadosa. Obrigada Amálio. Volta sempre.