26/05/2012

Desenho e Música




As minhas recordações da infância e adolescência passam obrigatoriamente pela presença dos meus pais, da quinta, dos carros e dos meus irmãos.
O meu irmão mais velho interessava-se já por outras coisas e afastava-se das minhas brincadeiras.
A presença do mais novo, no entanto, era constante.
Passávamos horas a desenhar em folhas de papel que colocávamos no centro da minha cama, de forma a ficarem acessíveis aos dois, cada um de seu lado, de joelhos no tapete. 
Eu desenhava a lápis os carrinhos do Tonô, carrinhos de modelos que ele adorava e eu reproduzia em desenho à vista.
Também os cowboys, os cavalos e as pistolas eram dos nossos escolhidos para reproduzir a carvão, em pormenores que só as crianças sabem valorizar. Viamos então o "Bonanza" e o "Robin dos Bosques" ainda a preto e branco.
Outra das nossas preferências era a música.
O meu irmão levantava-se muito cedo, começando logo a cantar e a tocar bateria em tudo o que fizesse barulho, de caixas a panelas, para grande desespero da nossa mãe, que o "despachava" para o quarto do fundo na tentativa de descansar, ou pelo menos baixar o som àquele festival diário.
E eu, que nada sabia de música, lá estava presente na escolha do nome do seu "conjunto", no desenho do guarda roupa para os seus espectáculos e como motorista da rapaziada, já que o meu pai me emancipara para poder dar-me a carta de condução e me emprestava o carro, sempre que lhe pedia. Faziamos grupo com os Freires, o Sr Leitão, o Albino e outros com a mesma paixão. Ouviamos o Elvis, os Beatles e os Rolling Stones.
O meu jeito para desenho, não sei onde se meteu.
Nunca cheguei a aprender música, embora tenha alguma sensibilidade para o que é bom (como quase toda a gente), não tendo passado de parte integrante do público.
Mas o mais importante ficou e fez-me companhia em todos os momentos da minha vida, dos mais dolorosos aos mais alegres.
Não sei imaginar a minha vida sem ele, nem como seriam essas recordações sem as nossas risadas.

05/05/2012

De que é feita a saudade?



A boleia
O caminho da quinta era feito várias vezes, diariamente, desde que naquele Natal tinhamos ido para lá viver.
Frequentávamos, eu e os meus irmãos, o colégio no Fundão e o meu pai encarregava-se de nos trazer para as aulas.
No trajecto obrigatório encontrávamos muitas crianças que iam a pé para a escola, estivesse calor ou frio de rachar.
Um ou outro mais pequenino dava a mão ao mais velho, que levava o saco com os livros e a merenda, a alsa atravessada no peito franzino, caminhando junto à berma.
Todos sabiam que se o meu pai passasse naquele momento, cabia sempre mais um.
Enquanto caminhavam, iam espreitando tímidos, os olhos a brilhar, sorriso rasgado, mas sem coragem para pedir. Quando o carro parava e nós abriamos a porta, a cachopada lá se ia encaixando, encavalitados uns nos outros, a rir, sempre a rir, apesar de encharcados ou enregelados, contentes de poder “ir a cavalo”, como eles diziam.
Entre elas, vinha muitas vezes a filha do rendeiro da quinta nossa vizinha, uma miúda ruiva, de pele branca e sardenta, de olhos grandes e muito vivos.
 (O dono era o Dr Fausto, médico na Covilhã e a esposa, uma senhora muito elegante, de cabelo loiro, um pouco misteriosa para mim, já que raramente a via)
O meu pai gostava de a arreliar só para ouvir as respostas que ela tinha sempre na ponta da língua e que dava com sorrisos envergonhados.
Naquele dia o meu pai brincou com o seu cabelo ruivo:
-Então cachopa, a quem é que tu sais com essa cor de cabelo?
Ela riu e desenvolta respondeu:
- À minha patroa.
As gargalhadas do meu pai encheram o carro e todos rimos sem sabermos bem a que é que achara graça, se ao geito divertido da miúda, se à sua resposta.
Os 2 Kms eram feitos por aquelas crianças que viviam nas quintas, a pé, anos a fio, sem queixumes (as escolas não tinham aquecimento e se as crianças chegavam molhadas, assim ficavam das 9 da manhã às 3 da tarde) e sendo felizes com coisas tão pequenas como era aquela boleia.
Já no colégio, lembro os meus amigos das Donas, do Casal, do Souto da Casa, da Aldeia de Joanes e outras aldeias perto do Fundão, que eu via, com alguma inveja, meterem-se à estrada e voltarem a pé para suas casas, em grupos que enchiam a estrada de risadas e de brincadeiras, no fim do dia de aulas.

Amélia

Quantas lembranças renascem de mil vezes lembradas
Olhos de ternura morna, suave, doce
Carinho discreto, tímida carícia
Sorriso presente nas lágrimas de muitas perdas
Coração rasgado tantas vezes e sempre remendado
Amélia, amiga, ama, mãe e amada.

01/05/2012

De que é feita a saudade?


O amigo António Filipe falou-me das suas recordações do Fundão na nossa juventude e do meu pai, como parte  desse passado.
Quem se lembra do meu pai relaciona-o de imediato com a sua escola e com os seus automóveis.
Eu ligo-o a muitos mimos, a muitas gargalhadas, a muitas histórias e a muitos amigos.
As lembranças mais antigas ligadas à sua profissão são de quando era ainda muito pequena, antes de ir para a escola.
Parece que era diabrete e para não estar constantemente de castigo, o meu pai levava-me nas lições de condução. Eu cantarolava, ria com as suas brincadeiras ou dormia durante horas.
Era percurso obrigatório das lições, a ida à quinta, caminho que todos os alunos conheciam de cor, assim como as cerejas, as uvas ou até o vinho que acabavam por provar.
Sorrio ao recordar esses tempos e penso na dificuldade que o meu pai teria agora para se adaptar a tantas regras, tão vazias da paixão que ele punha em tudo o que fazia
Os seus alunos ficavam seus amigos para sempre e eu tive consciência de mim mesma pela primeira vez, como sua filha. 

Abril em Portugal

E já se vai o Abril, para dar lugar ao Maio, que como tudo, começa no 1º.
Antes que termine o Abril, busco algumas lembranças da minha adolescência, já tão distante. Abril era cantado com uma música muito conhecida, com letra adaptada e intitulada “Avril au Portugal”. Eu não entendia porque é que o meu país tinha tido a honra de ser cantado com a língua de Paris. Realmente “Abril em Portugal “ soava mais simplório, mais provinciano. Em francês era mais giro. Comecei por pensar que era por tanta gente da nossa terra estar em Paris. (Assim como pensava que nos filmes de cowboys, quando diziam “mãos no ar”, era para darem um tiro em cada mão).
Mas pouco me demorava nesses pensamentos pois em Abril havia a feira e os divertimentos que vinham com ela. Depois começavam os dias bonitos e já podíamos passear com os rapazes avenida acima, ou estar na esplanada durante o tempo que o dono do café achasse que valia o consumo que tinhamos feito. Aí, nunca era muito tempo, pois quase todos tinhamos o dinheiro de bolso que daria para um café ou um bolo, apenas.
Só que de vez em quando era alertada por alguma conversa diferente, como “o Jornal do Fundão teve problemas com a pide”, “o Sr Armando Paulouro foi incomodado pela pide”, “cuidado com fulano que é informador da pide” e eu perguntava ao meu pai o que se passava.O meu pai não queria que nós falássemos disso e advertia-nos com ar grave. Vieram eleições e achei entusiasmante, mas as pessoas não acreditavam nelas e diziam “votar para quê? Eles não os deixam ganhar”. Então pensava que as eleições eram como uma luta de boxe com golpes baixos.
Mas as pessoas encontravam sempre forma de ter esperança e ficaram cheias dela quando Salazar caiu de maduro e deu lugar a uma maçã da mesma árvore. Tudo parecia mudar, mas eu começava a desconfiar que era mesmo só de nome, mudar de Salazar para Caetano, de pide para dgs, etc.Tive a certeza, quando o meu irmão Tonô, que estava na Faculdade de Direito em Lisboa e vivia comigo, chegou a casa cheio de hematomas provocados pela polícia de choque, que invadira a Faculdade e desancara a “estudantada revolucionária”.
Aconteceu Abril em 1974, e a 25 eu não sabia se era para continuar a ter medo, se era para festejar. Mas o 1º de Maio veio dar-me a resposta e aprendi com o passar do tempo, que era mesmo para festejar.
Este mês de Abril de 2012, o noticiário abriu com a comemoração do aniversário do ditador e cerca de dezena e meia de portugueses, junto à sua campa, tinham ar consternado. O meu encolher de ombros daria por encerrada a notícia, se não fosse a surpresa de ver quem discursava, baixar o papel onde lia o que lhe ia na alma e levantar o braço, em saudação fascista, com orgulho.
Foi como se me desse uma bofetada. Por segundos, voltei a ter medo.