19/12/2008

O Presépio

Quando passámos a viver na quinta, o tempo mais esperado era o Verão e logo a seguir o Natal.
No Verão era a rua, o ar livre, a piscina, a bicicleta, o jardim, a azáfama da apanha da fruta, os dias grandes e as brincadeiras todos os dias reinventadas.
Mas mal vinham os primeiros dias de frio, começavamos a pensar no Natal.
O que mais me entusiasmava era fazer o presépio.
A procura das caixas onde tinham sido guardadas as figuras, a compra de figuras novas para enriquecer o cenário do estábulo onde colocaríamos a Sagrada Família, a escolha do lugar para ser montado, eram temas constantes das conversas com os meus irmãos e com a minha mãe.
Era feito, a maior parte dos anos, em cima da lareira da sala pequena, por estar perto de nós todos a maior parte do dia, já que era ali que tomávamos as refeições e a minha mãe passava o seu tempo a bordar ou a fazer renda.
Começavamos por desembrulhar os pequenos figurantes de barro- pastores, ovelhinhas, reis magos, anjos e muitos outros, que ano após anos iam enchendo as caixas dos sapatos, onde esperavam pelas luzes da ribalta.
Depois íamos ao Fundão comprar outras, que tinhamos visto nas montras das mercearias da Rua da Cale.
Pedíamos algodão em rama, papel de prata e um vidro, à mãe. Trazíamos a serradura e os pausinhos da oficina de marcenaria.
Colávamos os pausinhos até ter uma cerca para o rebanho e uma pequena ponte para o riacho.
Separávamos a Igreja, as casinhas e as pessoas que formavam a aldeia. Depois os pastores com as ovelhinhas às costas e algumas ovelhas para os seguirem. Os 3 Reis Magos nos seus camelos, a estrela para o cimo da cabana, a vaquinha e o burrinho eram os últimos a ser separados.
A caixa de sapatos, onde tinhamos metido com todo o cuidado a Mãe, o Pai e o Menino, era a última a abrir.
Para contruirmos a cabana e a manjedoura, pedíamos sempre ajuda. Encarrapitados numa cadeira, espreitávamos com todo o interesse o colocar de pequenos troncos por mãos mais experientes.
Papel amachucado era colocado a formar algumas montanhas, lá atrás, bem junto da parede da chaminé. O Presépio começava a tomar forma e nós não parávamos quietos, nem calados.
A etapa seguinte era a minha preferida. Com uma cesta da fruta, íamos percorrer a quinta até a enchermos de placas de musgo verde e fofo, para que o presépio ficasse mais bonito.
O frio deixava-nos de nariz encarnado e o peso do cesto fazía-nos dobrar as costas e arrastar os pés, mas nem assim deixávamos de andar depressa, de tagarelar, de rir, de gritar as palavras que o alvoroço nos sugeria.
Cada pedaço de musgo era colocado, com cuidado, a atapetar o chão da cabana, em seu redor e em cima do papel para formar as elevações. Um vale estreito era deixado para passar o riacho, que acabava num pequeno lago. Rematavam-se muito bem os limites do presépio, para que o musgo não caísse quando, com o calor da sala, ficasse mais seco e frágil.
Afastávamo-nos todos, para olhar de longe e ter noção mais exacta da cabana no canto e das montanhas atrás.
Para simular a água, as pratas dos chocolates. Ali em cima, o moinho. Ao centro, a ponte. Aqui ao lado, o lago com o vidro, para dar brilho.
A Igrejinha ali, não, todos gritávamos, lá, ali, ali, com as casinhas à volta. Mais além, o rebanho dentro da cerca.
Para delinear os caminhos, a serradura da madeira clara.
A estrela era presa por cima da cabana. O anjo, velava pelo estábulo.
Era a vez do Menino ser deitado nas palhinhas, com a Nossa Senhora à sua direita e o S. José à sua esquerda, olhando-O com ternura. Atrás o burrinho e a vaquinha respiravam junto do Menino, para o aquecerem com o seu bafo morno.
Cá fora, os pastores com as ovelhinhas ao ombro. De longe, os 3 Reis nos seus camelos, aproximavam-se vagarosamente. O algodão era então bem esfarrapado, para parecer neve. Uma lâmpada escondida atrás da cabana, iluminava o presépio de noite e de dia.
Agora, a ansiedade crescia na espera da noite da Consoada, em que estaria presente toda a família, da cozinha chegava o cheiro da canela no arroz doce e depois da Missa do Galo encontraríamos um presente no nosso sapato, deixado na lareira, junto do presépio.
No dia 6 de Janeiro, os Reis Magos chegavam ao estábulo e era hora do presépio ser de novo embrulhado e descansar mais um ano, nas caixas de sapatos.
Então, voltávamos para a escola a exibirmos a prenda que o Menino Jesus nos trouxera.

01/12/2008

Natal, Natal!

E chegou de novo o mês de Dezembro... O mês mais longo do ano!
Está frio, não apetece sair da cama de manhã. Não apetece andar na rua. Chove e é penoso entrar e sair do carro.
Só se ouve falar do Natal.
Árvores com 30 mts de altura e 60.000 lâmpadas. Montras com enfeites coloridos e brilhantes para chamar ao consumismo.
Prendas que se dão, porque é hábito dar.
Comida, roupas, enfeites, tudo, porque é Dezembro.
Quem se lembra do nascimento de Jesus?
Depois vem o fim do ano. Roupas bonitas para ir dançar e cear a um sítio in, a um hotel ou casino podre de chique.
E quem não tem dinheiro para prendas? Quem não tem emprego, casa, paz, saúde, liberdade, família ou apenas gosto por toda esta festança?
Dezembro é um Pai Natal obeso, vestido de cor ridícula, inventado para crianças ricas, para pais ricos, para países ricos. O Pai Natal é o simbolo do esbanjamento, do consumismo, do markting e da publicidade vencedora. É Dezembro das lojas e das prendas, não da família e do presépio.
São renas e trenós em vez de pastores e pequenas ovelhinhas de pelo anelado. São árvores de plástico, em vez de pequenos povoados feitos de musgo e serradura, são montes de prendas, em vez da Missa do Galo, são bolas e fitas, em vez de canções de Natal à consoada.

"Oh meu Menino Jesus,
Oh meu Menino tão belo
Logo tu foste nascer
Na noite do caramelo"

Mês de solidão, de saudade, de lembranças, de desejos e de duras realidades.
Mês vestido de encarnado, com laços dourados, luzes intermitentes, canções com guizos e coros de crianças a um "Menino em palhas deitado".
Quem me dera em Janeiro, livre de Almoços de Natal com os colegas, jantares de Natal com os patrões, escolha de prendas que não agradam a quem as dá, nem a quem as recebe, livre das trocas nas lojas, das montras atafulhadas de adereços de ouros e pratas, das árvores sem trambelho com estrelas no topo, dos troncos de chocolate mal amanhados, dos fritos areados, dos tubos iluminados e enroscados por tudo o que é sítio, das fitas franjadas e dos papéis com desenhos estrelados, dos laços de pontas encaracoladas, que nada atam.
Quem me dera já no sossego de Janeiro, em que ninguém tem dinheiro e por isso não enche as lojas, esperando horas em filas paradas, para pagar meia dúzia de bugigangas que não servem para nada. Dezembro é um mês fanfarrão que acaba com copos e farra, esquecendo quem não tem ordenado, nem subsídio de Natal.
E logo a seguir, outra estopada... O Carnaval.

Anita

A Amizade é um sentimento inteiro.
A Amizade verdadeira nunca esmorece, nem que passe por silêncios e ausências.
Não é interesseira, não é orgulhosa, não toma partidos diferentes consoante os humores.
Não se pede, não se vende, não se compra, não se avalia, não se pesa, não se mede.

Dá-se, dá-se, dá-se sempre, sem condições, sem obrigações, sem restrições.


A Amizade verdadeira tem nome- Anita



18/11/2008

Ter a Natureza como ama

Quando penso na infância que eu e os meus irmãos tivemos, acho sempre que foi uma sorte termos nascido numa pequena vila do interior de Portugal.
As pessoas que falam com ar trocista de quem vive nas aldeias das Beiras, quando lhes reconhecem um sotaque de xs arrastados, não sabem como essa característica não os desmerece, mas antes os destaca de imediato como previlegiados.
Ainda hoje pude confirmar isso num curso que fiz e onde estavam colegas da Guarda, Beira Alta.
Quando intervinham nas matérias que estavamos a debater, havia sorrisos em alguns outros, mais citadinos, que reparavam nos seus zs em vez de ss.
A forma de dizer certas palavras, varia de zona para zona e não é novidade para ninguém como é diferente no Porto e em Lisboa, em Faro e em Évora, em Castelo Branco e em Viseu.
Em Faro e em todo o Algarve, as palavras terminadas em o, passam a terminar em e. "Fui buscar um pane para limpar o sapate do moçe".
No Porto diz-se "Estive a ver televisõe todo o serõe" e em Lisboa dizem "Vou à pisxina".
"Cada roca com seu fuso e cada terra com seu uso", diz o povo.
Foi então que a certa altura, os colegas da Guarda quiseram mostrar umas fotos duma iniciativa que levaram a cabo no serviço. Era um passeio em bicicleta com crianças e funcionários de todas as idades.
Via-se a Serra da Estrela magestosa nos seus vales e encostas, com um véu ténue de nuvens, ora mostrando, ora escondendo os verdes de tons escuros, o imenso céu que nesse dia até estava mais cinzento que azul, mas mesmo assim muito bonito, as árvores por aqui e por ali, num ambiente de ar puro, de sossego e de partilha com a Natureza, que o passeio de bicicleta proporcionava.
O barulho dos camiões, dos carros, das buzinas, o fumo dos escapes, a correria das pessoas e a indiferença para o que se passa à sua volta, a sujidade dos passeios, o mau cheiro que sai das portas entreabertas dos edifícios antigos, as paredes que os olhos se habituam a ver como limite tão curto do seu horizonte, não é a realidade que aquelas crianças conhecem e que só vivem como novidade numa visita com os pais às cidades grandes.
Passear a pé ou de bicicleta, sentar no muro e olhar lá para longe, até todos os contornos de casas e de aldeias desaparecerem como minúsculos pontinhos, sentir o frio na cara e nas mãos, o odor dos pinheiros e dos eucaliptos, ouvir o ar entrar e sair do peito, porque não há outro barulho a incomodar, enfim, as sensações que eu conheci durante toda a minha infância e adolescência, é um privilégio. A nossa terra, a nossa casa, a nossa família, os nossos amigos e os nossos costumes estão presentes e acompanham-nos no crescimento, sem darmos por isso.
Quantas vezes, depois de estar já há algum tempo em Lisboa, me apeteceu ter força para conseguir empurrar os prédios, fazer calar por segundos o trânsito e as pessoas, poder olhar para longe sem que o meu olhar fosse atroplelado logo a um palmo do nariz.
Brincar no quintal, no jardim, na terra, no ribeiro, correr, molhar-me a regar as flores, sentar-me na escada da rua a vestir as bonecas, dormitar em cima da cama com o sol a aquecer-me os pés e apenas ouvir de vez em quando o zumbir de algum insecto no seu vai vem atarefado, era o dia a dia que eu sentia acarinhar-me, como ama cuidadosa.
Ir buscar os ovos ao galinheiro, comer a canja ao almoço de domingo, grelhar a carne nas brasas formadas na lareira acesa desde cedo, tudo com um sabor próprio, sem selos de metal ou carimbos do supermercado.
Lembro a maçã bravo esmolfe que perfumava a sala, a uva vermelha de bago rijo, que aguardaria pelo Natal para ser colhida do prego, onde fora pendurada para se conservar.
Todos os perfumes, sabores e texturas tão conhecidos e apreciados, ajudaram-me a ser quem me reconheço.
Esqueci os filmes que vi no balcão do velho cinema, mas não esqueci a emoção de entrar e ir olhando os cartazes com os ídolos que eu admirava.
Esqueci os pormenores, mas o essencial ficou, grudado à pele, circulando nas veias, enchendo as minhas lembranças.
Que pena tenho de ver os meus netos crescer na cidade e não aproveitarem mais este ar da Serra, o silêncio das noites, os pássaros no quintal e as borboletas nas flores.
Como amei sempre o meu lugar e como continuam lá as minhas raízes!

04/11/2008

Maunça, Açor.


"Fundão Artes e Sabores da Maúnça
Um dos eventos mais saborosos do ano. A tradicional mostra gastronómica na aldeia de Açor, Castelejo (Fundão). Haverá tasquinhas, animação de Rua e um magusto comunitário.
A Festa da Castanha ou Artes e Sabores da Maúnça está cada vez maior, havendo cada vez mais cuidado na escolha de conteúdos de qualidade. Talvez a maior festa de gastronomia regional do concelho do Fundão.
Neste fim-de-semana, as portas das casas abrem-se para o visitante.
Cada casa, na sua loja, na sua sala, na garagem ou no armazém, são "Restaurantes ou Lojas", onde nos podemos deliciar com os seus sabores: o coelho no azeite, a chanfana, os brulhões ou maranhos, o cabrito assado, o feijão com couves acompanhado de carne da salgadeira e enchidos fumados, servidos com muita gentileza, pão caseiro e vinho da Maúnça.
E as sobremesas da castanha, arroz doce, miaus, os queijos "corno" e à ovelheira ou cabreira.
Depois ajudamos a digestão com licores originais como o da castanha, a aguardente de medronho e mel e uma caminhada pelas "tasquinhas", na mira de mais uma gulodice ou para apreciar o artesanato local com grande incidência no tema dos "sete martírios do linho".
Venha daí. Dias 8 e 9 de Novembro. "
Enviado pela Marta.

01/11/2008

Shangai e Londres (ou Nova Iorque)

Este fim de semana foi "a noite das bruxas"...
Todos os dias se compram mais produtos "made in China"...
O Fundão está cada vez mais no mundo.
Cheguei para ficar uma vez mais com a minha mãe, a noite estava chuvosa e fria.
Anunciavam neve para a Serra da Estrela.
Mal saí do carro dei logo com as obras na loja chinesa.
Ali, no rés do chão do prédio onde a minha mãe vive, havia um supermercado óptimo.
A qualquer hora do dia que precisasse de café, farinha, leite ou lexívia, era só descer no elevador e... voilá. Mas o dono do supermercado foi vencido pelo pagamento elevado que um cidadão de Shangai, muito atencioso, lhe ofereceu por aquele espaço, no centro da cidade, em frente do mercado municipal. E foi assim que o supermercado se transformou em "loja do chinês" com tudo à venda daquilo que eu não preciso e nada do que me faz falta.
Ao lado, uma perfumaria dava-me sempre hipótese de adquirir a prenda, que só à última hora me lembrara ter de dar.
Perfumes maravilhosos, em caixas lindas e frascos autênticas obras de arte. Enfim, uma alegria para os olhos.
Parece que era assaltada com frequência... disseram-me.
Lá se foi também a perfumaria e o senhor de Shangai, entre dois sorrisos e duas pequenas vénias (cada vez mais pequenas, pois ele acha que "em Roma, sê como os romanos") pôde estender o seu negócio, deitando apenas uma parede abaixo!
Entrei em casa e daí a pouco estavam a bater-me à porta montes de garotos barulhentos, a pedir doces.
-É a noite das bruxas! É a noite das bruxas! Doçura ou travessura! Doçura ou travessura!
O meu Fundão está muito mudado... muito global!
(A imagem que lembrei naquele momento, foi a de um documentário sobre os Índios na selva amazónica do Brasil, que vestiam t-shirts com publicidade à coca-cola e usavam boné com o símbolo da adidas).
Se os mais novos foram pedir doces de porta em porta e sujar de farinha as entradas daqueles que não deram nada, (a minha ficou em estado deplorável!) os mais velhos carregaram ramos de crisântemos para o cemitério, enfeitando as campas daqueles que perderam, mas continuam a lembrar e a amar. Após o Dia de Todos os Santos (até do Santo de Pau Carunchoso e do São Nunca à Tarde, como eu dizia quando era pequena) é o dia dos Finados, dia de rezar uma pequena prece por alma dos que partiram da nossa casa, da nossa terra, mas não do nosso coração.
Se "noite de bruxas" é novidade importada, que seja... ser novidade já é bom, digo a mim mesma, para me convencer a aceitar todas as modernices que nos impingem.
Também o foi o Dia de S. Valentim e é um dia bem simpático! Pelo menos, para quem tem namorado.
E de dia em dia, de festa em festa... nos vai suando a testa!

26/10/2008

Trovoada na quinta.

Música. Ouvia uma música muito em voga e lia um autor desconhecido. Notas de música e linhas de letras revezavam-se. Letras e música.
O céu fechava-se em nuvens escuras e ameaçadoras, arrastando o ar pesado e difícil de respirar. De um momento para o outro parecia ter anoitecido.
Os fins de semana na quinta, quando o Sol brilhava, eram uma festa e as horas passavam a correr. Mas naquele domingo arrefecera muito e a luz que entrava pelas janelas, apesar de se ir a meio do dia, era cinzenta e opaca, obrigando a acender o candeeiro para conseguir ler mais um pouco.
O casacão que vestira, parecia fino para aquele frio que atravessava a roupa e cortava os ossos.
Espreitei pela janela. O vento soprava cada vez com mais força, sacudindo as árvores e deitando ao chão as folhas que anunciariam o Outono.
De repente, um clarão rasgou o manto escuro que cobria o céu e por um instante fugaz, iluminou toda a parte da quinta que avistava da janela. Um arrepio gelou-me, não sei se de frio, se de susto. Sentei-me à mesa onde tinha os meus livros, depois de correr os cortinados para evitar a entrada do frio pelas frestas da velha janela de madeira.
Um trovão voltou a chamar-me a atenção para o temporal que se aproximava.
As folhas avermelhadas que teimavam em ficar mais um tempo nas árvores antes do Inverno, eram sacudidas freneticamente e deitadas ao chão, sem dó nem piedade.
Outro clarão e logo a seguir outro estrondo enorme que parecia abanar a casa desde as fundações. As trovoadas, no Fundão, foram sempre as maiores, mais assustadoras e mais insistentes que conheci toda a vida.
Com um novo relâmpago, a luz da sala apagou-se e fiquei às escuras, como se fosse noite avançada.
Sabia que tinha de esperar com paciência que a trovoada passasse e a electricidade fosse reparada. A televisão, que eu ligava mal entrava em casa, para me fazer companhia e para ouvir alguém falar, estava muda. A braseira eléctrica que me aquecia sob a fralda da mesa, arrefecera.
O vento soprava cada vez com mais raiva, assobiando com fúria pelas frestas das portas e os primeiros pingos grossos de chuva ameaçavam partir os vidros da janela.
Eu esperava que voltasse a electricidade e estremecia a cada relâmpago que me mostrava toda a sala, a cada trovão que abanava o chão sob os meus pés.
Apertei o casaco, cruzando-o no peito e aconcheguei a gola bem junto ao queixo.
Não tinha luz suficiente para ler, não tinha televisão, não me apetecia estar ali ao frio.
Comecei a contar quantos segundos demorava a chegar o trovão, depois do raio rasgar o véu negro de nuvens, para saber se a trovoada se aproximava, ou se afastava.
Estremeci com o estrondo que seguiu o raio de luz, mesmo por cima da minha cabeça. Começava a ter medo. Era sempre assim... quando o trovão vinha logo atrás do relâmpago, o castelo de nuvens unia-se para despejar todo o céu no vale do Seixo, enquanto eu tremia, gelada e impotente. De um sopro, o vento abriu a janela do quarto dos miúdos. Fui fechá-la e tive de limpar o chão encharcado.
Aproveitei para verificar as outras janelas e trouxe uma manta, que coloquei pelas costas.
Estes minutos duravam horas... eram horas terríveis de escuridão e de pavor.
A Natureza que eu tanto amava, mostrava o seu lado mais medonho, a sua força e o seu querer. Eu continuava na sala, agora completamente às escuras, e só os móveis continuavam indiferentes ao temporal, atrevendo-se mesmo a competir com a Natureza na mostra de sombras imensas e distorcidas, de cada vez que os relâmpagos invadiam a casa e a tornavam salão de baile de fantasmas.
Às vezes, a espera durava longas horas... lembrei-me disso e fui à cozinha procurar uma vela e fósforos.
Não podia ir buscar lenha para a lareira com aquela chuvada. Tinha frio e estar às escuras era penoso. Qualquer barulho diferente na rua ou nos quartos do fundo, deixavam-me alerta.
Contei segundos entre o raio e o trovão, pensei em tarefas que aguardavam por mim no dia seguinte, imaginava a dança que a chuva ensaiava no terraço e nas vidraças... desesperava.
E já cansada de me controlar, de me encher de força para não ter medo de cada vez que os portões da garagem batiam com a força do vento, peguei na manta e fui deitar-me. Um relâmpago que caíra mais perto, fez o telefone tocar e deixar de funcionar. Sabia que nada mais havia a fazer. A vela gastava-se e eu gelava.
Abri a cama, deitei-me, aconcheguei a roupa no pescoço e tapei a cabeça.
Desejei que a tempestade se cansasse e fosse atormentar outra casa solitária na encosta da Serra.
Quando o silêncio voltou, não soube se era a trovoada com pena de mim, se o sono a aconchegar-me em seus braços .
Pela manhã ouviam-se os pássaros, os móveis reduziam-se a estáticos mamarrachos encostados ás paredes e o vento mais calmo, parecia fazer cantarolar os ramos mais nus das macieiras...
Era dia de novo e a vida parecia não ter memória.

20/09/2008

Os teus olhos castanhos...

Um conhecido meu, no Fundão, tinha um problema de dicção em que não conseguia pronunciar os cês.
No dia a dia, já se notava bastante a sua dificuldade, mas todos disfarçavam e pareciam não reparar na sua maneira de cortar as palavras.
O pior era a sua insistência em cantar nas festarolas e reuniões de amigos.
Mal se falava em serão entre amigos, lá estava ele a sugerir uma cantoria.
Todos sabiam já o que iria acontecer, mas não tinham coragem de lhe dizer, nem sequer de o contrariar.
Então, quando se punha de pé e pedia para cantar, era inevitável a música escolhida.
Todos sugeriam outra, fingindo que era só para variar, mas ele insistia. Era aquela que ele adorava e ninguém o demovia.
Certa vez houve uma noite de fados no jardim do Fundão e encheu-se de gente o jardim, para assistir. Correu bem e no final, os amadores foram convidados a participar. Aconteceu o que todos temiam... Ele não se fez rogado, subiu para o palco e pegou no microfone.
Começou :
-Eu _ueria _antar a minha _anção preferida, _ue já todos _onhecem... Os teus olhos _astanhos.
E lá se voltou a ouvir:
-Os teus olhos _astanhos, de en_antos tamanhos são pe_ados meus...

11/09/2008

Doze filhos de uma vez só...


Vi esta fotografia durante anos na malinha, onde a minha mãe guardava as suas recordações. Havia fotografias de pessoas amigas, de pic-nics, dos nossos aniversários, de viagens que os meus pais tinham feito, de primeiras comunhões e principalmente de casamentos.
Não sei quem deu esta fotografia ao meu pai, mas andava misturada na grande colecção que se podia encontrar na malinha.
De vez em quando ia ver todas aquelas caras que já conhecia, mas que continuavam sempre a ter alguma coisa de novo.
Esta era uma das que me hipnotizava, ficando a olhá-la durante longos períodos de tempo, não sabendo porquê, concretamente.
Ora me fixava nos leitões, contando-os vezes sem conta, ora mirava o seu tratador de mangas arregaçadas e chapéu preto.
Pensava que ele estava tão vaidoso, como a porca. Parecia-me sempre que ela se sentia a mãe e ele... o pai! Claro que o orgulho que o fez ficar na foto para a posteridade, me dava a ideia de que ele gostava tanto dos leitõesinhos, como se fossem seus "filhos".
Era apenas o facto do cuidado paternal que me vinha à cabeça, claro!
Os filhotes da porca pareciam-me iguais à mãe, não só na cor, mas nas orelhas espetadas que se vêem nos que estão de frente.
Era uma família completa!
Aquela corda preta que está a meio da parede, atrás do tratador, também me despertava curiosidade. Eu conhecia o hábito de plantar videiras à beira das casas, junto às portas, para puxar e fazer latada. No Verão, quando estavam plenas de rama e de uvas, davam sombra à soleira da porta, onde se sentavam à tarde, em cadeirinhas baixinhas, a conversar com os vizinhos ou a fazer renda. Como eram tirados os ramos que iam nascendo por baixo, a planta ficava esguia e sem folhas junto da parede, como o cabo de um guarda sol.
Quando a encontrei no fim de tantos anos, fiquei admirada por voltar a fazer a contagem dos leitões-penso que são 12- e a parar nos mesmos pormenores.
É mesmo um encanto. 12 filhos de uma vez!!!

06/09/2008

Alcongosta, Fundão

"No segundo fim-de-semana de Setembro, como sempre, realiza-se a festa de Alcongosta. Por isso tencionamos nos próximos dias dar especial atenção a esta temática. Uma festa que tem a curiosa particularidade de todos os anos ser organizada por quem completa 40 anos, uma forma pouco vulgar de definir quem são os festeiros. Apesar de as pessoas não terem o mesmo número de filhos que era habitual antigamente, a verdade é que a festa, com muitos ou poucos recém-quarentões, nunca deixou de se fazer. Este ano não vai ser excepção. Os cartazes já estão por aí com o programa, que inclui a inevitável procissão das velas, no sábado à noite, e a de domingo à tarde. Claro que a componente pagã não foi esquecida. Fica o encontro marcado para o ringue, então. Só que este ano quem faz a festa no próximo ano não sobe na segunda-feira ao palco, como é habitual, porque se decidiu encurtar até domingo. Certamente que o momento irá acontecer no último dia da festa. A fotografia em cima foi enviada pela Carla Rolão, sem identificar quem aparece. A ela, que gentilmente tem cedido material para o blogue, obrigado. Nos próximos dias vamos postar mais. Nomeadamente da Telma Rolão e da Ana Cláudia Ribeiro, que também já enviaram registos fotográficos e a que se presta aqui o devido agradecimento. Acontece que as imagens que chegaram são sobretudo da procissão, com o interesse de serem quase todas bem antigas. Era bom se o pessoal pudesse mandar mais coisas. Mais uma nota. A foto foi tirada na rampa da fonte, há uns 40 anos. Reparem que nenhuma das casas que se vê está de pé. Actualmente são as da Gracinda Rambóia, do Alberto Mendes e Víctor Bonifácio. Já agora, alguém sabe dizer quem são os festeiros este ano?"
In: pedacosdealcongosta.blogspot.com

Alpedrinha, Fundão

"novelos doces...

De 19 a 21 de Setembro irá decorrer o Chocalhos 2008, Festival dos Caminhos da Transumância, que trará ao Fundão as sonoridades do Mediterrâneo.
Haverá workshops, exposições e conversas em torno do universo pastoril e dos segredos feitos da lã.
Concertos, tasquinhas, artesanato, produtos tradicionais e muita animação de rua, onde com certeza o licor e doce de cereja não vão faltar. Um festival a não perder!"
in: coisasdecereja.blogspot.com

Amor para sempre

13/07/2008

O fim anunciado

Nasci no Fundão, onde estudei até terminar o liceu.
Sou filha, neta e bisneta de fundanenses.
No entanto, quando me interrogo sobre hábitos, costumes, palavras e lugares da minha terra, sinto que nada sei.
Andamos na escola, no colégio e saimos da nossa terra, para estudar e exercer uma profissão, sem sabermos interpretar as nossas raízes.
Tenho pena, porque à medida que procuro o que ficou para trás, vejo como tantas coisas se perdem, desaparendo para sempre, não só da vista, mas também da memória das pessoas.
E são essas pequenas histórias que originaram o que somos e fizeram a nossa História.
Cada cidade vai evoluindo, deitando por terra o que é velho e a identifica, para dar lugar a um novo descaracterizado e igual em todas as outras.
É como se lhes vestissemos uniforme.
Poderíamos evoluir sem perder o que existe, restaurando e preservando as características da nossa terra, para as darmos a conhecer aos nossos netos.
As casas de pedra dão lugar aos prédios de andares, as lareiras, aos aquecimentos centrais, os fornos a lenha comunitários, aos bolos de fábrica congelados e preparados para fazer na hora.
Tudo se moderniza e a nossa identidade desaparece.
Já não há festas populares com arraial, nem artesanato local. Os doces, os licores e as compotas são feitas em indústria própria e com as precauções da longa duração. Os pratos tradicionais, envergonham-se da sua simplicidade e enfeitam-se com bijuteria que lhes dá um ar estranho.
O cabrito no forno deixou para trás a assadeira de barro e aparece na mesa em pirex brilhante e transparente. O feijão verde frito com polme de ovo, está ausente das merendas e presente o frango assado no momento. O esparregado compra-se congelado, pois migar a rama de nabo, cozê-la, escorrê-la e fazer com ela o esparregado frito no azeite com um dente de alho, a que se junta o sal, a farinha e o vinagre, dá trabalho e tira tempo, que se pode utilizar em tarefa menos enfadonha.
A tradição e o sabor... esses deixam de ser importantes. Importante é ver a telenovela no horário anunciado, ou ir ao café na hora certa.
Os pimentos já estão assados e em frascos adequados. A massa tenra para os pastéis, já está confeccionada e em caixas de papelão, nas arcas dos supermercados. Os ovos verdes, quase desapareceram das entradas e já ninguém conhece o botelho frito. O arroz doce já não tem corações desenhados com canela.
Os meus filhos adoram ovos verdes, mas não os sabem fazer. (Porque é que se chamam verdes, perguntaram-me. Porque levam muita salsa picada, respondi.)
E assim ficam para trás as nossas coisas e tomam o lugar delas hamburguer, pizza e donuts.
Tudo tem um fim. Até nós teremos.

29/06/2008

Surpresa!

Naquele tempo...
Eu vivia na minha terra e tinha muitos sonhos.
Dividia-os com algumas amigas, que eu estimava muito e que, tal como eu, seguiram os seus destinos com o coração cheio de esperança.
Tive hoje, depois de muito tempo, notícias de uma amiga desses tempos de espera e de decisões.
Espera, por ver concretizados os sonhos e decisões que ajudariam a vê-los realizados.
Sempre que ouço o nome da cidade em que esta amiga vive, lembro-me dela.
Sempre que penso naqueles dias, em que terminada uma etapa nos preparavamos para outra, a recordo e às nossas conversas, risadas e desabafos mais íntimos.
Nessa altura, as incertezas eram suplantadas pelas horas de felicidade, que traziam força para as afastar da nossa mente e abraçarmos os novos tempos com todo o entusiasmo.
Penso que as duas conseguimos encontrar o nosso caminho, embora de formas diferentes.
Ela é amada por 3 homens (fora outros, que a amam muito também e que recebem na mesma moeda), tem a sua carreira a avançar de vento em popa e está feliz.
"Quem acerta no casar, nada mais tem que acertar", diz o ditado popular e a minha amiga acertou.
Da decisão que tomou naquele dia, a sua vida tem visto desabrochar muitas flores e delas estão a amadurecer dois frutos que alimentam a sua alma e lhe adoçam a boca todos os dias.
Acertou também na profissão que escolheu e em que se realiza. Já lá vai o tempo em que as mulheres se realizavam apenas como esposas e mães...
Tenho muitas saudades da nossa cumplicidade.
Mas estou feliz por sabê-la bem.
Que os nossos caminhos se cruzem em breve é o meu desejo maior. E como estou habituada a lutar pelo que quero, vou estudar o mapa das nossas rotas, para desviar no primeiro atalho e ir ao seu encontro.

25/06/2008

Ginjas

Desapareceram as ginjas.
Eram consideradas uma fruta menor, somenos, fruta que não merecia o trabalho da apanha.
Mas o paladar dos ricos, habituados a provar tantas variedades de coisas boas, começou a reparar nelas.
A ginjinha que se bebia na taberna, como substituto dos licores com nomes esquisitos, começou a dar nas vistas.
E nos restaurantes lá da capital, começaram a achar graça ao doce de ginja para contrastar com outros sabores menos agrestes, menos selvagens.
Começaram a perguntar pelas irmãs pobres das cerejas, nas praças e nos mercados.
E foi assim... Hoje são mais procuradas, mais encomendadas e muuuito mais bem pagas.
Na Serra da Gardunha plantam-se ginjeiras à pressa. Adubam-se, protegem-se e colocam-se nelas as esperanças de uma existência menos dura, de invernos menos frios de lenha na lareira e de carne na salgadeira.

Cerejas

Cerejas, cerejas, cerejas.
São os tempos de alegria nas encostas da Serra da Gardunha.
A Primavera trouxera a floração que mais parecia ter coberto a Serra de neve.
Com os dias mais quentinhos, a flor da cerejeira deixou as ramadas e atapetou o chão, como se fosse o véu da noiva deixado para trás na vinda da Igreja.
Os vários tons de verdes foram aparecendo com a folhagem, que trouxe de novo a vida à Gardunha.
À saída de Castelo Branco e à medida que se aproxima Alpedrinha, cada encosta, cada vale, cada cume sorri com o rejuvenescimento que a folhagem das cerejeiras consegue fazer à Natureza em cada Primavera.
Agora é a festa!
As cerejeiras vergam as pernadas carregadas com as cerejas que amadurecem e brilham, no seu colorido berrante, ao sol.
É tempo de risos, de fartura, de alegria, de doce sumarento na boca.
É tempo de renovar esperanças daqueles que tratam a terra e tão pouco recebem pelos produtos maravilhosos que conseguem gerar nela, trabalhando dias que começam nas madrugadas e avançam pelas noites.
As cerejas são o sangue da Gardunha, sangue doce, sangue vivo, mas sangue fugaz.
Com o começo do Verão elas partem para as Lisboas, para os Algarves e é tempo da Gardunha se preocupar com os incêndios, que vão encher as encostas de chamas laranja e névoas de cinza.

08/06/2008

Já a formiga...

A Mimila tentava dar de comer à criança de quem se ocupava, a minha mãe, de 3 ou 4 anos nessa altura.
Convencia-a de como era bom, de que já não estava quente, que era só mais uma colherzinha para engordar o dedo mindinho do pé, onde ainda não tinha chegado alimento... mas a criança não cedia.
Por fim a Mimila, lembrou-se de fazer uma negociação.
- Vá lá, Celestinha, se comer tudo vai com a Mimila ao mês de Maria.
Ao que ela respondeu: - Ao mês de Maía, não... ao chiema.

27/05/2008

Fundão em desânimo

Atravessei a rua e fui ao carro deixar o saco de viagem.
Ia tomar café e embora só regressasse à minha casa no fim da tarde, aproveitava a ida à rua para levar já algumas coisas.
Um senhor, com idade aproximada da minha, parou, olhou-me e disse: - "Já viu o deserto em que está o Fundão? Não se vê movimento na rua."
Perante a minha admiração, explicou: - "Não me conhece, mas eu conheço-a bem. É a filha do Sr Salvado. Conheço-a desde muito pequena. Eu sou da família do... Olhe para esta terra, sem viva alma nas ruas. Que tristeza!"
Hoje já não sei o nome do tal senhor, mas lembro-me do seu olhar, auscultando as ruas desertas, numa tarde de domingo.
Fui tomar café ao centro comercial. Não havia em cada loja ninguém além do seu proprietário.
Não havia clientes, não havia visitantes.
Na pastelaria só a empregada, eu e meia dúzia de bolos. "Não há necessidade de colocar mais na vitrine, pois não se vendem" - explicou-me ela.
O Fundão está triste e desanimado! As pessoas do Fundão dão vida ao centro comercial da Covilhã, às esplanadas da Ciudad Rodrigo e aos supermercados situados nos arredores.

18/05/2008

Maçãs de todas as cores

A Mariazinha, minha prima direitíssima, já que o pai era irmão do meu pai e a mãe, irmã da minha mãe, tinha fama de ser uma criança muito bonita e muito inteligente.
O meu pai falava dela sempre com o enlevo de um primeiro amor (era a primeira sobrinha).
Um dia, a família foi passear e a Mariazinha ia feliz.
A mudança de ares abriu o apetite da criança, que começou a sentir um ratito no estômago.
Quando atravessaram uma cidade, tiveram de parar numa rua mais movimentada e mesmo ao lado da janela por onde a Mariazinha espreitava a paisagem, estava uma mercearia com frutas expostas à porta. As maçãs verdes, amarelas, vermelhas e rosadas que brilhavam ao sol, sorriram e piscaram o olho à minha prima. Foi então que ela, com a cabeça fora da janela, gritou:
-Oh Machã, machã, vem cá!

Lembrar...

A Mimila contava-me muitas histórias e duma forma, que só ela sabia.
Não há dia nenhum em que não pense nela, por causa de um lugar, de um objecto, de uma pessoa ou das suas histórias, que me repetia vezes sem conta e eu não me cansava de ouvir, pois traziam sempre qualquer pormenor novo.
Além disso, ela própria se achava graça. "Fazia a festa e deitava os foguetes", como costumava dizer enquanto ria com gosto.
Contava que a filha, a Teresa, tinha muita imaginação e de vez em quando lá se "saía com uma".
Um dia chegou a casa muito eufórica e disse: "Minha mãe, vi um avião no céu a voar muito baixinho. Quando eu andava, ele andava. Quando eu parava, ele parava."
A Mimila admoestou-a: "Isso pode lá ser, sua maluca. Onde é que já se viu uma coisa dessas? Ai, ai. Não se dizem mentiras."
A Teresa ficou ofendida e empenhou-se em que a mãe acreditasse, pelo que voltou a afirmar com convicção: "É verdade, minha mãe, eu andava e o avião andava, eu parava e o avião parava. E voava tão perto, tão perto, que eu até consegui ver o cãozinho."
Parou de bordar, olhou admirada para a filha e só conseguiu perguntar: "O cãozinho!!! Qual cãozinho?"
A Teresa, com os olhos postos na mãe e a pensar que já estava quase ganha aquela batalha, respondeu muito alvoroçada: - O piloto, minha mãe. Até vi o piloto.
A Mimila riu e compreendeu que a filha não mentia... imaginava, associando ideias.
(Piloto, Bobi e Lassie eram os nomes mais frequentemente dados aos cães, naquela altura. Agora colocam nomes de pessoas aos cães e já me tenho confundido, quando ouço falar do Adolfo ou do Sebastião!)
Recordo como achava lindo a Teresa chamar "minha mãe" ou a Mimila falar do marido dizendo "o meu homem". Penso que ainda se fala assim no Fundão, pelo menos nas pessoas que não passam férias no Brasil ou em Cuba.
Quando alguém dizia "o meu marido", havia logo quem brincasse... "o meu marido, foi ao mar e ficou encolhido!"
E eu ainda gosto de ouvir dizer "o meu homem".
(Esta foto mostra o que eu via da varanda da sua casa, varanda onde passámos muito tempo juntas. O marido era o proprietário de um dos táxis que se vêm frente ao edifício. No r/c funcionava a praça e no 1º andar, o casino.
O jardim com o pelourinho, era o palco de todas as nossas brincadeiras.
Lembrar, sabe bem.

17/05/2008

Boa disposição

Muitos anos sem o convívio com os fundanenses genuínos, fez com que me esquecesse de palavras engraçadas que se dizem por aqui. Ultimamente, desde que venho cá com regularidade, tenho ouvido algumas, que relembro com saudade.
Hoje fui ao Centro Comercial mesmo ao lado da casa da minha mãe, para comprar pão.
Estava a ser atendido um casal muito risonho e eu esperei, como é normal.
Entretanto a senhora dizia: Ai menina, parece-me que o pastel de nata se está a rir para mim, parece que diz "comei-me, comei-me", o melhor é fazer-lhe a vontade.
A empregada riu-se e foi buscar o pastel de nata.
A senhora voltou a dizer: Olha para isto... tão airoso, até era pecado não o atender!
Riram-se todos.
Preparava-se para comer o bolo, quando disse em laia de justificação: Temos que levar a vida a rir!
A empregada, já a servir o meu café, respondeu-lhe : Tristezas não pagam dívidas.
E a senhora pronta a "fazer a vontade" ao pastel de nata, disse: Se pagassem, andávamos todos monos.
Lembrei-me de ouvir chamar a alguma criança que amuara- "Está feita mona!"
Achei graça e ri também.

03/05/2008

Rua da Cale

Fundão, Rua da Cale.
Rua estreita, de casas velhinhas, lojas pequenas, que começa perto do Largo da Igreja e acaba no Largo das 8 Bicas.
Numa pequeníssima lojinha, encontrei as linhas de boa qualidade, que procurava para fazer uma renda especial.
Uma mercearia à moda antiga, vende os biscoitos tradicionais do Fundão, embalados como as regras modernas exigem, mas tenros e com o sabor dos tempos em que era criança.
Na loja dos tecidos a metro, ainda aceitam dar uma afinação à máquina de costura Singer, oferta da avó Helena e que continua muito útil, 30 anos depois.
Lá ao cimo, na loja de móveis, vê-se a mesma arrumação de há 50 anos, onde peças antigas em 2ª mão, verdadeiras raridades que eu adoro, permanecem encavalitadas, aproveitando todos os centímetros de espaço existente tanto em largura, como em altura. São arranha-céus de cómodas, mesinhas, cadeiras e bancos.
A taberna de portas gémeas de empurrar, banco corrido encostado a uma das paredes, balcão de madeira escura e pouca luz, onde continuam a servir as sardinhas em molho de escabeche, os quadradinhos de bacalhau frito e os peixinhos da horta (feijão verde frito com polme de ovo) para acompanhar o "copito", que aguça a conversa no fim da tarde, é o ambiente preferido dos que não gostam de beber "finos" e comer tremoços salgados na esplanada, nem de falar de política.
O fotógrafo deixou a sua arte aos filhos, que ainda expoêm na velha montra, as fotografias de casórios e primeiras comunhões, em poses solenes.
Havia ali uma mercearia de enchidos e queijos da serra, em que o proprietário era tratado por "Fala-Barato". Hoje, em vez dos aromas do presunto e do salpicão acompanhados com conversa amistosa, sobressaem t-shirts com desenhos de banda desenhada americana, em tons escuros e fluorescentes.
Na Rua da Cale as pessoas caminham devagar, de braço dado, olham as pequenas montras com atenção, cumprimentam os comerciantes a quem perguntam por um qualquer familiar doente e escolhem, experimentam ou trocam o que finalmente se decidiram comprar, porque não combina com o que têm em casa.
É um restinho do Fundão antigo, onde não há promoções e filas para a caixa, onde não há parque de estacionamento, nem se paga com cartão, onde as pessoas se conhecem, se falam, se desejam boas melhoras ou boa saúde.
As grandes superfícies, as lojas irmãs de tantas dezenas por esse país fora, os carrinhos de meter a moeda e os sacos com publicidade, estão no outro lado do Fundão. No bairro da indiferença e do dinheiro de plástico, dos excessos e do desnecessário, das utilidades e das futilidades.
Na Rua da Cale os passeios são estreitos, como estreita é a própria rua, as casas são pequenas tal como os lucros dos seus proprietários, o movimento é lento, dando tempo para uma troca de palavras, mas o ambiente é familiar e o sorriso franco.

20/04/2008

Ecos

É estranho recebermos notícias de pessoas com quem não temos contacto há muito tempo, por terem lido as nossas palavras nestes recortes. Estranho, porque não imaginamos quem abre o nosso diário, mas também muito bom.
Recebi um comentário de alguém que pensava conhecer-me e me enviou algumas pistas, para saber se eu a reconheceria.
Fiquei confusa por causa de algumas fotos do seu blog, em que aparece uma mulher muito bonita, mas jovem demais para se lembrar da minha adolescência.
Enviou-me outras pistas, o que agradeço, pois foi muito agradável para mim percorrer os caminhos de volta e ir tropeçando em memórias que tinham passado um pouco diluídas nas paisagens mais desfoscadas pelos anos.
A Manela era mais uma das amigas que vivia no Largo da Igreja. Compreendo porque hoje o velho Largo parece morto... Tantos jovens tinham mesmo que fazer efervescência na calçada de granito, nas paredes de cantaria.
Levantar cada pedra do seu blog, onde estão escondidas obras de arte em fotos, em gravuras e em sentimentos, deram-me alguns minutos de muito prazer e deixaram-me pesar quando chegaram ao fim.
É muito bom ver os magníficos caminhos percorridos pelas pessoas da nossa terra.
Boa terra e boas sementes... dão boas colheitas!

19/04/2008

Recordações como gargalhadas

As recordações são como as gargalhadas, começamos por sorrir, rir e daí a pouco as gargalhadas ecoam sonoras, dando expressão ao contentamento da nossa alma em voltar as vestir as roupas de tempos mais felizes.
Um comentário deixado neste meu album de recortes por Frioleiras ( cujo perfil sensivel e de bom gosto que pude apreciar nas suas fotos, não me deixou pistas suficientes para a minha fraca memória identificar) fez-me lembrar do mundo que cabia no Largo da Igreja, o coração do Fundão, quando na minha idade não se encaixavam ainda preocupações, queixumes e solidões.
Era grande e cheio de vida. Hoje, pergunto-me se encolheu, se mirrou, se morreu... Para mim, era o sítio onde havia de tudo, onde tudo era perfeito. Agora está sem alma e sem cor.
Ou talvez porque nesse tempo, via-o com os olhos do coração...
A começar pelo Café "Misérias", nome que alguém lhe chamou uma vez e ali mesmo se fez o baptismo, porque nunca mais foi conhecido por outro. Era enorme, lá ao fundo tinha uma porta ao lado balcão, que dava para uma saleta. Fui muitas vezes aí brincar com a filha dos donos do café, minha colega na escola. Não sei porque lhe deram esse nome, pois era espaçoso, com enorme montra para o Largo por onde entrava muita luz. Talvez tenha sido alguma característica de poupança dos donos! Depois a mercearia onde a minha mãe comprava o café acabado de moer. O cheiro do café está na minha memória como se tivesse acabado de lá entrar agora mesmo.
O meu pai contava a história do homem que foi lá e pediu 5 tostões de café. O dono da mercearia chamou o empregado e disse:- Fernando, dá aí o café a cheirar a este senhor!
Muitos anos fiz aquela bebida dos deuses à moda do Fundão. Tinha uma grande cafeteira de água a ferver, da qual separava o equivalente a um terço. Juntava 2 ou 3 colheres bem cheias de café e mexia bem. Depois voltava a deitar a água que separara e esperava uns minutos. Era uma delícia, com bolo de azeite e queijo da serra...
No primeiro andar do "Misérias", era o consultório do Dr Mendonça, que tinha o diploma num grande quadro, com moldura a condizer com a fita amarela e o selo da Universidade. Era um diploma pomposo e eu adorava ir lá só para o rever!
Outra amiga com quem dividi muitas horas da minha vida, mesmo depois de adulta, era a Ana Maria. O pai tinha ali também uma mercearia em que a especialidade era o bacalhau. Eu via, com admiração, o pai da Ana cortar o bacalhau naquela guilhotina enorme e caírem os bocados ao lado, com o corte bem certo e a medida exacta- era o Sr. Manuel, irmão da Mimila, sorridente e bonitaço nos seus olhos azuis.
Ao lado e antes da capela da Misericórdia, era o consultório do médico de todos nós, o Dr. Amaral. Pai das minhas amigas, médico de todos os da minha geração. Era médico de clínica geral, mas (emende-me quem saiba mais do que eu) arrancava dentes, fazia partos, sei lá... Subir aquelas escadas era intimidante, tenebroso. Não sei porquê, talvez pela ideia de se ir ao sr. doutor!
No lado oposto, o melhor da festa- a Electrogardunha. Quando apareceu a televisão no Fundão, esta casa de electrodomésticos colocou uma na montra. Muita gente se juntava na rua para ver, embora o programa mais frequente fosse a foto de um riacho com árvores nas margens e a palavra Interlúdio como legenda. Eu ia lá espreitar o Franjinhas, um cão de pano com franja de lã, que falava!!!
Ali mesmo ao lado, vivia a Céu (o pai tinha uma loja de cabedais) e mais à frente a Anita (constantemente mudava de casa, embora todas fossem grandes e bonitas).
As árvores faziam a esplanada para as nossas conversas de adolescentes, a casa de electricidade exibia os "single" e os "LP" que estavam no top e a torre da Igreja dava as horas repetidas, lembrando a recomendação para a hora de estar em casa.

12/04/2008

Sobressair

Por falar do meu avô Leal...
O pai da minha mãe era o único filho homem, dos quatro que meu bisavô teve. A tia Rita, A tia Delfina e a tia Celeste eram as suas irmãs.
Era uma pessoa com estudos e com bens. Andou por fora, como diziam no Fundão e quando regressou era um solteirão no meio das mulheres.
Casou com 50 anos, com a minha avó, ruiva, de pele muito branca e com 25 anos, metade da sua idade.
Faleceu no ano em que eu nasci e só o conheço pelas fotografias.
Contam que numa terra distante, ao verem um homem tão alto, se admiraram.
O meu avô respondeu-lhes -"Lá na minha terra, sou o mais baixinho de todos!"
Ao que eles exclamaram -"Credo, vem da casa do diabo!"
Hoje o meu avô não daria tanto nas vistas...

Conchas de prata e laços

Perto da nossa casa, em frente do Café Aliança, havia uma ourivesaria propriedade do Sr Saraiva, mais conhecido por Saraivinha, por não ter mais de 1,40 m de altura.
Era casado com uma senhora igualmente pequenina, ou até um pouco mais baixa que ele.
Lembro-me de os ver na rua, de braço dado, dando passinhos pequeninos que me faziam lembrar as gueixas que vira no cinema.
Parece que não gostava que o tratassem por Saraivinha, mas as pessoas já o tratavam assim há tanto tempo, que até eram capazes de jurar que o seu nome era aquele.
Um dia eu precisei de uns elásticos para um trabalho da escola e a minha mãe disse-me que fosse pedir ao Saraivinha, pois para aquele trabalho ficavam bem os elásticos que ele usava para fechar as caixinhas do ouro. Mas a minha mãe recomendou-me logo que o tratasse por Sr. Saraiva.
Eram 7 ou 8 passos até lá e mesmo assim repeti o nome várias vezes para não me esquecer.
Na loja havia uma senhora a comprar qualquer coisa para oferecer não sei a quem.
Enquanto esperava, reparei nas coisas tão bonitas que ele tinha na vitrine, à altura dos meus olhos. Havia uma concha em prata e ao lado uma pombinha com pérolas nas asas. Atrás, uma coroa de folhinhas com pérolas também. Um laço com duas pontas, tinha ao meio uma pedra azul, cor do céu, que eu achei ser a mais bonita de todas.
De repente, ouvi uma voz a chamar-me e fiquei atrapalhada. Tinha-me distraído e esquecido completamente do que me trouxera ali.
"-Sr. Saraivinha, vinha pedir se me podia dar 2 elásticos para fazer um trabalho da escola, por favor."
Com ar de enfado, abriu uma gaveta, tirou dois elásticos e deu-mos.
Agradeci e saí a correr envergonhada, por me ter atrapalhado e dito o nome que ele detestava.
Quando olhei para os elásticos, fiquei surpreendida por serem tão pequeninos. Mal estiquei o primeiro, saltou-me das mãos e desapareceu.
No Fundão, um dia houve um jogo de futebol de solteiros contra casados, contaram-me.
Os guarda redes da equipa dos casados era o Saraivinha e da equipa dos solteiros, era o meu avô Leal, que media 2,02m de altura.
Mas... os homens não se medem aos palmos! Não me contaram foi se houve golos...

08/04/2008

O n.º 10

Nós morávamos no Largo José Barata, nº10, agora de novo com o seu nome primeiro - Largo da Praça Velha. Era uma casa grande, com r/c, 1º e 2º andar, que dava para duas ruas.
Muito da minha infância ficou entre as pedras que tiraram daquela casa, para construir uma outra, descaracterizada, pensada apenas para exposição de móveis.
Quando entrei na escola, já lá vivíamos. Todas as divisões me lembram histórias engraçadas.
Tinha janelas altas, com uma pequena grade de ferro trabalhado a 1/4 da altura e duas portadas.
A porta dava acesso a uma escada que levava ao 1º andar. Ao cimo da escada, o corredor com portas de um lado e doutro.
Mais à frente estava a escada para o 1º andar e outro corredor mais pequeno para a sala de jantar, a cozinha e a marquise a toda a largura da casa.
A marquise dava ainda para uma varanda e para o quintal. Era ali que nós gostávamos de brincar e era nesse quintal que habitualmente nos tiravam as fotografias a franzir os olhos com o Sol.
Na Primavera, os beirais do telhado enchiam-se de ninhos de andorinhas e em cada entardecer os fios da electricidade serviam de baloiço às tão graciosas aves.
Nos domingos ia à Missa com a minha mãe e no regresso tinha de vestir o bibe para não sujar a roupa de ver a Deus. Tinha vários bibes, mas todos do mesmo género, com folhos nas alsas, nos bolsos e a rematar a saia, com histórias bordadas a linhas coloridas. Recordo a da Carochinha, que encontrou um tostão quando varria a casa e foi para a janela procurar com quem casar.
"- Quem quer casar com a Carochinha que é linda e engraçadinha e tem um tostão na caixinha?"
Então, sentava-me no peitoril da janela, donde atirava algodão em farrapinhos, que as andorinhas apanhavam em voo rápido.
Era uma casa especial. Apesar de já não estar lá, continua a povoar as lembranças da minha infância.

Amália

Diziam, no Fundão, que Amália Rodrigues tinha lá nascido. Lembro-me de ter lido em qualquer lado, que ela era Lisboeta. No entanto o meu pai afirmava que a grande fadista vivera com os pais e irmãs no Largo da Fonte das 8 Bicas, numa casa com dois degraus de granito, que me mostrava cada vez que lá passávamos.
Contava também, que a via muitas vezes em Alcântara, quando esteve na Marinha. Podia não ser ela, pois as irmãs são muito parecidas, mas sentia muito orgulho dessa proximidade com a sua Diva.
Na casa da quinta, no beirado por cima da janela do quarto dos meus pais, havia um meio cano que encaminhava as águas da chuva. Todos os anos, na Primavera, um passarinho fazia ali o ninho. Começava a cantar assim que o sol ameaçava aparecer no horizonte.
Por isso o meu pai baptizou-o com o nome de Amálio, rindo em gargalhada franca, em que mostrava os dentes brancos e certinhos, de meter inveja.
Era o meu pai que nos acordava todas as manhãs, nos dava o pequeno almoço e nos levava para o colégio, enquanto a minha mãe ficava mais um bocadinho na cama. Ela sempre gostou mais de fazer serão, ao contrário do meu pai, que mal se sentava, adormecia.
Então o passarito, logo de madrugada, cantava que se desunhava. Só que a minha mãe queria dormir...
Depois de muitos protestos sem resultado (o Amálio não entendia essas coisas de ficar na cama a "dormir à pressa", como nos dizia o meu pai quando lhe pedíamos mais uns minutinhos na hora de levantar) a minha mãe pediu-lhe para deitar abaixo o ninho do incómodo hóspede. Pediu várias vezes, mas o meu pai, entre uma gargalhada e uma resposta de "está bem", ia adiando o sacrifício, até que o Amálio partia de novo com a sua prole de tagarelas e deixava os inquilinos descansar.
Plantei uma árvore no jardim desta casa e também aqui um passarinho vem sempre na Primavera fazer ninho. É mesmo em frente do meu quarto e todas as manhãs o ouço cantar e conversar com a sua eleita e os seus rebentos.
Ontem estava um temporal terrível e eu só ouvia a chuva bater na grade da varanda. O meu Amálio estava caladinho e aninhado, calculo eu, no fundo morno do seu ninho.
Fez-me falta a sua cantoria.
Hoje, voltou a sorrir o Sol, embora tímido e em aparece-esconde. De novo o Amálio me fez companhia, cantando bem afinado para me dar forças para ir trabalhar.
O meu amor por ele foi uma das razões porque o meu pai sempre se fez esquecido do pedido de despejo. Quem sabe não me seguiu desde os tempos da quinta, através dos seus filhotes e dos filhotes deles? A Natureza é sábia e encaminha os seus filhos como mãe cuidadosa. Obrigada Amálio. Volta sempre.

09/03/2008

Cria fama e...

"Cria fama e deita-te a dormir", diz o ditado popular.
Há dias, falei com uma pessoa que conviveu comigo na minha adolescência e que eu já não via há muitos anos.
Falou-se da saúde, como é habitual e a certa altura ela referiu-se ao meu hábito antigo de fumar.
-Eu nunca fumei - respondi-lhe.
-O quê? Então eu não sei que fumavas? - insistiu.
Eu nunca fumei.
É incrível como as pessoas nos vêm com os seus olhos, através dos anos, colocando nos nossos ombros vidas que nunca vivemos e quando confrontadas com a verdade, têm mais facilidade em duvidar da nossa palavra, do que em reconhecer o seu engano.

11/02/2008

As meias da Ti Maria

No Verão em que passei para o 7º ano do Liceu, tinha um grupo de amigos no Souto da Casa, uma aldeia muito bonita, na encosta norte da Serra da Gardunha, a meia dúzia de km do Fundão.
Da aldeia vê-se toda a Cova da Beira, com a Serra da Estrela como moldura.
Como o nome diz, nas encostas estão alinhados como soldados, exércitos de castanheiros, formando soutos magestosos, que no Inverno têm múltiplos tons de amarelo, mostarda, tijolo e rubro, no Verão perdominando os verdes e no Outono se enchem de ouriços prenhes de frutos castanhos, cor da terra que lhes deu o ser.
O castanheiro sempre foi a minha árvore preferida, pela sua forma, pelas suas cores, pelo formato dos seus frutos, pela sua força.
O Souto da casa, por essa razão também, me encantou sempre e me deixou boas recordações.
É aí que vive a minha amiga Libéria, a casa de quem ia com frequência. É um palacete no centro da aldeia, numa rua com o nome do avô dela.
Ela era filha única e estudava em regime interno, num colégio de freiras em Castelo Branco. Nas férias pedia-me para ir passar lá uns dias, pois sabia que eu revolucionava toda a aldeia num abrir e fechar de olhos.
No grupo estavam os estudantes do Souto da Casa, meus colegas no Colégio do Fundão.
Os passeios à Pedra d´Hera, no cimo da Gardunha, a festa do Senhor da Saúde, as festanças em casa do Mário e do Tonito, as graçolas do Aníbal e do Virgílio... há muito tempo que não me lembrava deste período tão alegre da minha vida.
Foi lá que ouvi uma história a que achava muita graça.
Uma mulher muito pobre, como quase toda a população da Beira, nessa época, trabalhava no campo de sol a sol e regressava à tardinha a casa, em cima do seu burro, que a ajudava a carregar a lenha para o lume.
As mulheres, nessa altura, não saíam à rua sem meias, "com as pernas à mostra", como diziam. Usavam meias grossas, feitas de "fio da Escócia", que poupavam, por serem muito caras para usarem na lida do campo, onde se prendiam e rasgavam nas silvas.
Nesse dia, vinha ela sentada no burro, com os pés nus e a saia só pela barriga das pernas, quando passou em frente da taberna, onde estavam os homens a gozar a fresca do fim da tarde.
Cansada, balouçava sonâmbula a cada passo pesado do jumento.
Um dos homens gritou:- Eh Ti Maria, essas meias é que são boas, não se rompem!
Ela respondeu, sem se desconcertar:- Está vomecê muito enganado. Tenho uma camisa do mesmo pano e já tem um buraco ao fundo das costas.

03/02/2008

Já não se pode beber um copo!

Vou contar uma história verdadeira de um trabalhador do campo, que hoje não sei por que associação de ideias me veio à lembrança e ainda me fez sorrir.
Era um solteirão, com pouco mais de 40 anos, que se matava a trabalhar durante o dia e nunca se deitava sem os copitos da ordem.
Vivia com a mãe, já velhota, (ou talvez não, pois ele também parecia muito mais velho do que era) e lá cuidavam um do outro conforme podiam.
Ele, quando acabava o trabalho, passavva pela taberna e "aqui vai disto" até ficar com as pernas bambas e a vista turva.
Chegava a casa, a mãe lá tinha o jantar à espera. Como já ia meio atordoado, o pobre homem comia e adormecia ali mesmo à mesa. A mãe chamava por ele e muitas vezes lá conseguia convencê-lo a ir para a cama. Um desses dias, comeu a sopa e dormiu em cima dos braços, como era costume!
Demanhã, deu pela falta da dentadura postiça.
A mãe, na tentativa de a ajudar a recuperar aquele valor que tanto tinha custado a pagar, dava voltas e mais voltas à cabeça, tentando compreender o que poderia ter acontecido à dentadura do filho.
Lá se lembrou que ele adormecera sem comer a sopa toda e que ela despejara o que ficara no prato, no caldeiro da comida do porco. Se calhar, pensou ela, acontecera o que já por outras vezes vira... o filho dormia com a boca aberta e a dentadura caía no prato.
Foi à pocilga e procurou. Feliz, voltou ofegante a dar a notícia ao filho. O porco comera os restos do jantar, mas não comera os dentes dele.
Passou-os por água, ali mesmo, na torneira da cozinha e deu-os ao homem que mostrava as gengivas a sorrir.
O porco não era burro!

A Senhora e o novo pároco

Um verdadeiro dia de Inverno no Fundão. Muito frio, muito vento e muita chuva.
A Serra da Estrela está completamente desaparecida no nevoeiro cerrado que ali repousa há vários dias.
As pessoas caminham ligeiras, curvadas pelo esforço em manter o guarda chuva aberto, empurrado pelo vento.
Muita gente se dirige ao pavilhão multiusos, mesmo em frente da nossa casa.
Soube pela Amélia, que sempre me visita quando cá estou, que vai haver ali Missa em homenagem a Nossa Senhora Preregrina , que está no Fundão.
A Beira, como quase todo o país, creio eu, é muito devota de Nossa Senhora de Fátima e vive momentos de verdadeiro entusiasmo, desde que a Santa Imagem iniciou a sua peregrinação pelas freguesias deste Concelho.
Depois da morte do velho pároco, recebemos um jovem padre, dinâmico e moderno, que tem revolucionado toda a actividade religiosa desta terra.
(Deu nas vistas por usar jeans, blusão de cabedal, fumar cigarrilha e conduzir Mercedes. Também causou espanto quando fez obras na casa paroquial, instalou jacuzi e barbecue. Mas depois, fez obras na Igreja e todas as senhoras se ofereceram para doar bordados e rendas, bolinhos e bijuterias para serem vendidos e angariar dinheiro para as pagar. O Mercedes e o jacuzi ficaram esquecidos perante a beleza em que ficou a Casa de Deus.)
Ontem à noite fomos surpreendidos pela procissão das velas, que acompanhando o andor, passou na nossa rua e fez a minha mãe chorar de emoção.
Hoje, ouço os cânticos à mãe de Jesus, Rainha de Portugal, enquanto o vento varre com mau génio, os fiéis mais dedicados.
A contrastar, o atrelado que vende farturas e churros, está iluminado e em plena função, enchendo a rua com o cheiro dos fritos.

02/02/2008

A avenida

A nossa casa era na rua paralela à avenida, no lado direito na foto.
Neste terreno baldio nasceu a avenida, que hoje enormes Tílias enfeitam de verde escuro da folhagem e de pequenas flores brancas de perfume suave. Altos edificios emolduram-na, escondendo a Serra da Gardunha.
O meu pai contava que Duarte Pacheco, então engenheiro e mais tarde ministro das obras públicas, queria rasgar esta avenida da estação de caminhos de ferro até ao Largo da Srª da Conceição, dando uma coluna vertebral ao novo Fundão. Outra avenida sairia da estação até ao Espírito Santo, junto da Estalagem da Neve e ainda outra uniria estas duas ao cima da cidade, criando um triângulo à volta do centro antigo.
Assim, a avenida sairia da estação e seria cortada a direito, passando pela rua onde nós viviamos e indo até à Srª da Conceição.
Mas o projecto não passou disso, porque os terrenos pertenciam ao proprietário desta empresa de camionagem, em primeiro plano na foto, que se opôs porque isso faria recuar bastante a frente da empresa de camionagem já planeada.
Por isso a avenida começou praticamente na empresa das "camionetas" e terminou, logo a seguir, junto ao edifício da Câmara Municipal. Aí dá lugar R. dos Três Lagares, que vai em curvas de serpente adormecida até à Capela da Srª da Conceição. Muitos prédios nasceram e ligam a Aldeia de Joanes ao Fundão de forma desordenada e sem valorizar a beleza que a Cova da Beira oferece naquela encosta da Gardunha. Ideias curtas e... interesses! (doença que se tornou crónica).
Lembro-me de um pormenor do mercado nestes terrenos - uma idosa a apanhar algum feijões que ficaram caídos junto das bancas dos vendedores. Usava umas roupas escuras e compridas, arrastando-as pelo chão, conforme avançava dobrada, a catar na terra os pequenos grãos deixados para trás pelos tendeiros. Também recordo o som esganiçado que se ouvia ao longe, num rádio de fraca fidelidade a transmitir o relato do futebol, nas tardes de domingo.
A meio desta avenida construiram o Externato de Santo António, onde a nossa adolescência despontava e amadurecia, preparando-se para a Universidade e o voo do ninho.
O cinema sobressai ao cimo, ainda com algum brilho. A seguir o Café Cine, onde nasceram os primeiros amores, onde se escreveram os primeiros poemas, rituais repetidos por várias gerações.
Esse Fundão é lembrado por muitos de nós, que vivemos longe, com a memória do coração.

23/01/2008

Em frente de casa, no dia de festa.

No dia do meu aniversário, com a minha mãe, os meus irmãos, as minhas primas e as minhas melhores amigas.
A rua em que viviamos, ao lado do campo onde foi rasgada a avenida, é uma das principais ruas do Fundão.
Naquele campo, todos se juntavam ali nas 2ªs feiras, para fazer o mercado.
Agora não há ali oliveiras, nem pedras amontoadas que sirvam de cenário às fotos nos dias de aniversário... apenas prédios e carros.
O tempo passou depressa!
Eu sou a 1ª da direita e lembro-me que a minha boneca, que a Ana Maria segura, era a estrela de todos as minhas festas. Atrás de mim está o meu irmão Manel, um tanto escondido pelo laço da Luísa. O Tonô está ao colo da minha mãe.
(Todos juntinhos, ao meio, as mais pequenas com direito a uma pequena nesga deixada pela boneca e o fotógrafo, bem afastado para não perder nada do "maravilhoso" cenário!)
E lá tiraram a foto da ordem, para mais tarde recordar.

21/01/2008

As minhas decisões

A minha tia Fernanda, morava no Largo da Igreja e nós viviamos logo ao lado, no Largo José Barata.
Era realmente muito perto e para ir a casa dela, podia ir sempre pelo passeio, só precisando de atravessar uma rua muito estreita e sem movimento.
Todas as 3ªs feiras ia trabalhar a nossa casa uma costureira e eu ficava por ali a brincar de olhos nas voltas que os panos levavam nas mãos da senhora, enquanto os ia transformando em blusas e calções.
Naquele dia, a minha mãe mandou-me levar um recado à tia Fernanda. Eu ia toda contente porque adorava a minha tia e porque gostava de ir à rua, como todas as crianças.
Mas não resisti à tentação e apesar de ser Verão, vesti um casaco comprido que a costureira me fazia e deixara nas costas da cadeira, ainda alinhavado e sem mangas.
Apareci na porta da tia Fernanda com o casaco azul escuro de Inverno, cheio de alinhavos brancos e com os alfinetes a segurar os bolsos e metade da gola.
Mas ia vaidosa e muito feliz no meu casaco novo!

Se viessem e me dessem a escolher...

Quando era miúda tinha uma o hábito de parar em frente das montras e enquanto olhava ia pensando:-Se agora viesse alguém e me dissesse que me dava uma coisa que eu quisesse, o que é que eu escolhia?
Teria começado pelos brinquedos, penso eu. Mas não me lembro de haver uma loja de brinquedos no Fundão.
Não havia grandes superfícies de brinquedos, supermercados ou centros comerciais. Geralmente os brinquedos que tínhamos, eu e os meus irmãos, era o meu pai que nos trazia de Lisboa, de Coimbra ou até de Espanha, onde ia comprar os pneus para os carros.
Havia a papelaria do Zé Henriques que vendia livros de histórias, puzles e alguns brinquedos.
Já então a montra da papelaria tinha montes de coisas que me chamavam a atenção. Ficava a ver os estojos para os lápis, as borrachas, as canetas, os aparos, os livros com capas coloridas e pensava no que escolheria se chegasse ali alguém e me desse uma, só uma, daquelas coisas. O interessante do jogo era ser uma apenas. Tinha de ir excluindo uma a uma até ficar com a que preferia. Demorava muito tempo e enquanto escolhia, falava sozinha. Excluía pela cor, pela forma, pelo tamanho, pela utilidade...
Gostava de antiguidades e passava em frente da loja do Forte para ver os santos, as bacias, os jarros, os ícones, as jarrinhas com desenhos coloridos, as caixinhas de música com bailarinas e os candeeiros de corta luz aos folhinhos. Tentava escolher entre o jogo de xadrez em pedra ou as caixinhas de cristal com damas antigas desenhadas na tampa, os pequenos elefantes de marfim, as tartarugas de cobre ou as molduras de estanho com raminhos de flores a um dos cantos.
Mais tarde comecei a demorar-me nas montras das ourivesarias.
Adorava jóias. O formato, as cores e o brilho fascinavam-me.
Ficava frente ao Riscado a escolher o anel com um nó, a pulseira de malha batida com um fecho trabalhado e uma pedra azul no centro, o fio com várias voltas cheio de pedras coloridas... sei lá. Todas me agradavam, por uma ou por outra razão e eu sonhava que uma delas me seria oferecida sem mais nem menos, por artes mágicas.
Era a minha mania, a maneira de eu sonhar, por momentos, ter as coisas bonitas que não podia comprar.
Ainda hoje eu paro e fico imenso tempo a escolher, mas o meu pensamento apenas mudou um pouco quando substituo "se viesse alguem e me dissesse para escolher" por "se me saísse a sorte grande", porque aprendi que só tenho aquilo que consigo pagar.
Continuo a gostar de antiguidades, de jóias e de livros (esses são os que mais vezes me vencem e eu levo comigo depois da habitual exclusão, quase sempre sugerida pelo preço!).
Esta semana há jackpot no Euromilhões e quero jogar. Se me sair vou comprar... uma loja para o meu filho montar a sua livraria e espaço net, uma casa para a minha filha e para mim... bem... para mim...

05/01/2008

Friiio...

Estou no Fundão mais uma vez e hoje está muito friiiiio!
O dia amanheceu com dificuldade, porque está um nevoeiro cerrado.
A casa está aquecida e até costumo ter calor, pelo que logo pela manhã, abro as janelas e deixo o ar fresco entrar na casa onde a doença da minha mãe me deixa deprimida. Mas hoje o ar está gelado e tive de voltar a fechar tudo.
Olho pela janela, sem vontade de me aventurar a ir tomar um café.
Não se vê viva alma na rua e uma ou outra pessoa que passa, vai encolhida, com o nariz vermelho, os cabelos arrepiados e as mãos escondidas no fundo dos bolsos.
Nas notícias dizem que em Espanha não se pode circular por causa da neve e na Roménia, a terra do meu amigo Marcel, o termómetro atinge os 24 graus negativos.
As grandes tílias da avenida finalmente estão a deixar cair as folhas, pois com os dias de sol e temperatura amena, as pobres andavam confusas... não sabiam se era Primavera, se Outono!
Este nevoeiro é sinal de que na Serra da Estrela está a vestir o seu vestido de noiva e aparecerá, logo que a cortina de nuvens se afaste e surjam raios de sol descorados e tímidos, com o seu tradicional manto branco bordado de cristais e olhar de soberana sobre toda a Cova da Beira, que sempre se curva à sua beleza e majestade.

01/01/2008

Trastes para a rua.

Vivi já noites de passagem de ano de todas as maneiras e feitios... infelizmente, pois é sinal que já festejei mais do que tenho para festejar.
Lembro-me de um ano na Idanha-a-Nova, na casa da Tia Fernanda, quando ainda era pequena.
Fui lá passar as férias do Natal e à meia noite a minha tia cumpriu com a tradição daquela terra arraiana, ou seja, deitar pela janela fora todos os objectos usados que não gostasse.
Procurámos tachos amolgados, pratos com pequenas falhas, canecas, frigideiras, tudo o que por ali andasse já pouco apresentável.
Carregámos montes de tralha para perto das janelas do último andar da casa e esperámos com impaciência pelas 12 badaladas.
O frenesim dos meus primos espantava-me, pois eu pensava que iriamos atirar aquelas coisas todas pela janela, que desapareceriam no escuro da noite e pronto, estaria cumprido o ritual.
A minha tia vivia no centro da Idanha, onde as casas são antigas, a iluminação fraca e o movimento nas ruelas praticamente nulo.
Na noite de passagem de ano, com frio, tudo estava silencioso e escuro, nada de emocionante se antevendo.
Quando começaram a soar as badaladas da meia noite, ouviu-se uma gritaria ensurdecedora vinda de todas as janelas, seguida de bater de latas e tachos, de atirar coisas que se partiam no chão com estrondo e embatiam nas paredes de pedra como bombas, sucedendo sempre a um ruído grande, outro ainda maior.
Mas era uma gritaria alegre, entusiasmada, contagiante, que me fazia rir e saltar de emoção, uma barulheira infernal que durou enquanto duraram os tarecos que viram o seu fim nas ruas e quintais da Idanha.
Por fim, a pouco e pouco a noite voltou a ficar quieta e silenciosa como antes .
Atiraram-se fora os trastes velhos e pouco decorativos, para começar o ano com a casa e a alma mais livres para as coisas novas.