06/05/2007

Amélia

A Amélia e eu, com as 7 saias das nazarenas, numas férias na praia da Nazaré. Já nessa altura ela me ensinava a voar, usando a imaginação... O meu sorriso mostra como isso me fazia feliz!
Estou no centro, sempre tímida ao ser fotografada... não mostrava ser diabrete! Mas era.

Escola Primária

Entrei na escola com 7 anos feitos em Junho.
A escola reabria religiosamente no dia 07 de Outubro, depois das férias grandes. Funcionava das 9 h às 12 h e das 13h às 15h. Tínhamos um intervalo a meio da manhã, que servia de escape à energia que acumulávamos durante as aulas.
Na sala havia um retrato emoldurado de cada lado do quadro negro. Um era de Américo Tomás, o presidente da república e outro de Salazar, o presidente do conselho de ministros.
Era obrigatório o uso de bata branca.
Quem não soubesse alguma parte da lição, que se levava para estudar em casa, apanhava reguadas nas mãos, com toda a força que a professora pudesse. Era doloroso, humilhante e ineficaz, mas prática corrente e até aplaudida. A escola não tinha aquecimento e no Inverno passávamos muito frio. No caminho para a escola, a chuva molhava-nos o calçado e a roupa, com que ficávamos durante todas as horas de aulas.
Eu vivia no Fundão, não muito distante da escola e podia mudar de roupa, ou de calçado, quando ia almoçar. Mas a maior parte das crianças minhas companheiras, vivia nas quintas, donde saía a pé, ainda de noite, regressando a casa só no fim das aulas. Traziam uma merenda que comiam no pátio, ao ar livre, porque a escola fechava à hora do almoço. Tiritávamos de frio o tempo todo.
As matérias que aprendíamos eram compactas, cansativas e não deixavam grande margem para a criatividade.
Às quartas-feiras de tarde, havia bordados (lavores femininos) ou ginástica no pátio de terra batida. A ginástica limitava-se a alguns exercícios, que se adaptavam às poucas condições existentes. Os bordados eram tão "exigentes", que eu andei da 1ª à 4ª classe com o mesmo "naperon", de 20cm x 20cm, sem concluir um pequeno desenho em ponto pé de flor.
As casas de banho, fora da escola, estavam sempre sujas e com o chão encharcado.
Nunca fizemos uma visita de estudo, nunca vimos um filme, nunca nos mostraram um livro de histórias, nunca fizemos teatro, dança, ou música.
Lá aprendi as serras, os rios, as províncias, as capitais, as culturas do solo e do subsolo, os reis, as guerras, as conquistas aquém e além mar, os presidentes, os tratados, as contas, a tabuada, os verbos e a gramática de fio a pavio.
Ganhei o 1º prémio na admissão ao liceu (4ª classe) com uma redacção sobre os ciganos. Escrever era já então para mim a tarefa mais fácil e que me dava mais prazer.
O que eu mais gostava era do recreio. Era muitas vezes, quase sempre, lider dos jogos que eu própria escolhia. Gostava de correr e de rir. Usava o cabelo curto e molhava a franja com suor de tanta brincadeira.
Levava as minhas colegas para lanchar na minha casa e continuarmos a brincar durante mais um bocado... o que deixava a Amélia desesperada por ter tudo a seu cargo.
A casa, as crianças e as refeições eram preocupação da Amélia, a nossa criada.
Criada era o nome que se dava então a uma empregada interna. Não tinha direito a folgas, fins de semana, férias, subsídios, ou sequer horas de entrar e de sair do serviço. Lá em casa, era a primeira a levantar-se e a última a deitar-se. Era ela que me ia levar e buscar à escola.
A Amélia não sabia ler, era analfabeta. Nunca a mandaram aprender a ler e a escrever... nunca teve tempo, nem possibilidades económicas para poder frequentar a escola.
Não nos podia ajudar nas letras ou nos números, mas ensinou-nos quase tudo o resto. O primeiro mealheiro, a primeira oração, a primeira história... foram-nos ensinados pela Amélia. Hoje pergunto como é que ela fazia para ter tempo e força para tanto!
Era tempo de fazer os alicerces...
A professora, a contínua, as minhas companheiras e até mesmo o edifício, estão presentes na minha memória como se nada se tivesse passado depois deles.