26/10/2008

Trovoada na quinta.

Música. Ouvia uma música muito em voga e lia um autor desconhecido. Notas de música e linhas de letras revezavam-se. Letras e música.
O céu fechava-se em nuvens escuras e ameaçadoras, arrastando o ar pesado e difícil de respirar. De um momento para o outro parecia ter anoitecido.
Os fins de semana na quinta, quando o Sol brilhava, eram uma festa e as horas passavam a correr. Mas naquele domingo arrefecera muito e a luz que entrava pelas janelas, apesar de se ir a meio do dia, era cinzenta e opaca, obrigando a acender o candeeiro para conseguir ler mais um pouco.
O casacão que vestira, parecia fino para aquele frio que atravessava a roupa e cortava os ossos.
Espreitei pela janela. O vento soprava cada vez com mais força, sacudindo as árvores e deitando ao chão as folhas que anunciariam o Outono.
De repente, um clarão rasgou o manto escuro que cobria o céu e por um instante fugaz, iluminou toda a parte da quinta que avistava da janela. Um arrepio gelou-me, não sei se de frio, se de susto. Sentei-me à mesa onde tinha os meus livros, depois de correr os cortinados para evitar a entrada do frio pelas frestas da velha janela de madeira.
Um trovão voltou a chamar-me a atenção para o temporal que se aproximava.
As folhas avermelhadas que teimavam em ficar mais um tempo nas árvores antes do Inverno, eram sacudidas freneticamente e deitadas ao chão, sem dó nem piedade.
Outro clarão e logo a seguir outro estrondo enorme que parecia abanar a casa desde as fundações. As trovoadas, no Fundão, foram sempre as maiores, mais assustadoras e mais insistentes que conheci toda a vida.
Com um novo relâmpago, a luz da sala apagou-se e fiquei às escuras, como se fosse noite avançada.
Sabia que tinha de esperar com paciência que a trovoada passasse e a electricidade fosse reparada. A televisão, que eu ligava mal entrava em casa, para me fazer companhia e para ouvir alguém falar, estava muda. A braseira eléctrica que me aquecia sob a fralda da mesa, arrefecera.
O vento soprava cada vez com mais raiva, assobiando com fúria pelas frestas das portas e os primeiros pingos grossos de chuva ameaçavam partir os vidros da janela.
Eu esperava que voltasse a electricidade e estremecia a cada relâmpago que me mostrava toda a sala, a cada trovão que abanava o chão sob os meus pés.
Apertei o casaco, cruzando-o no peito e aconcheguei a gola bem junto ao queixo.
Não tinha luz suficiente para ler, não tinha televisão, não me apetecia estar ali ao frio.
Comecei a contar quantos segundos demorava a chegar o trovão, depois do raio rasgar o véu negro de nuvens, para saber se a trovoada se aproximava, ou se afastava.
Estremeci com o estrondo que seguiu o raio de luz, mesmo por cima da minha cabeça. Começava a ter medo. Era sempre assim... quando o trovão vinha logo atrás do relâmpago, o castelo de nuvens unia-se para despejar todo o céu no vale do Seixo, enquanto eu tremia, gelada e impotente. De um sopro, o vento abriu a janela do quarto dos miúdos. Fui fechá-la e tive de limpar o chão encharcado.
Aproveitei para verificar as outras janelas e trouxe uma manta, que coloquei pelas costas.
Estes minutos duravam horas... eram horas terríveis de escuridão e de pavor.
A Natureza que eu tanto amava, mostrava o seu lado mais medonho, a sua força e o seu querer. Eu continuava na sala, agora completamente às escuras, e só os móveis continuavam indiferentes ao temporal, atrevendo-se mesmo a competir com a Natureza na mostra de sombras imensas e distorcidas, de cada vez que os relâmpagos invadiam a casa e a tornavam salão de baile de fantasmas.
Às vezes, a espera durava longas horas... lembrei-me disso e fui à cozinha procurar uma vela e fósforos.
Não podia ir buscar lenha para a lareira com aquela chuvada. Tinha frio e estar às escuras era penoso. Qualquer barulho diferente na rua ou nos quartos do fundo, deixavam-me alerta.
Contei segundos entre o raio e o trovão, pensei em tarefas que aguardavam por mim no dia seguinte, imaginava a dança que a chuva ensaiava no terraço e nas vidraças... desesperava.
E já cansada de me controlar, de me encher de força para não ter medo de cada vez que os portões da garagem batiam com a força do vento, peguei na manta e fui deitar-me. Um relâmpago que caíra mais perto, fez o telefone tocar e deixar de funcionar. Sabia que nada mais havia a fazer. A vela gastava-se e eu gelava.
Abri a cama, deitei-me, aconcheguei a roupa no pescoço e tapei a cabeça.
Desejei que a tempestade se cansasse e fosse atormentar outra casa solitária na encosta da Serra.
Quando o silêncio voltou, não soube se era a trovoada com pena de mim, se o sono a aconchegar-me em seus braços .
Pela manhã ouviam-se os pássaros, os móveis reduziam-se a estáticos mamarrachos encostados ás paredes e o vento mais calmo, parecia fazer cantarolar os ramos mais nus das macieiras...
Era dia de novo e a vida parecia não ter memória.