25/11/2007

Laranjas da Baía

No jardim da quinta havia uma laranjeira, lá ao fundo, à entrada da garagem dos tractores, que na altura desta foto, já tomava corpo.
Enchia-se de flor e tinha 3 camadas de laranjas: verdes pequeninas, médias e já maduras. Tinham muito bom aspecto, tanto em tamanho, como em cor. A laranjeira, no entanto, era brava.
Fora enxertada por diversas vezes, mas os enxertos não pegavam e a laranjeira lá continuava a crescer, a florescer e a carregar de frutos, sem se deixar domesticar. As laranjas apesar de óptimo aspecto, eram de casca grossa, sem sumo e azedas como o vinagre.
O meu pai desistiu de a domar e deixou-a no seu estado natural, pois com o verde da folhagem, o branco da floração e a cor viva das laranjas, enfeitava o jardim.
Todas as pessoas que iam à quinta, mal olhavam a laranjeira, cobiçavam as laranjas. Muitas vezes colhiam uma disfarçadamente e descascavam-na com pressa, para a comerem sem serem apanhadas.
Ao meterem o primeiro gomo na boca, davam um grito, fraziam o nariz, os olhos e a testa, atiravam-no ao chão com pressa e cuspiam tudo entre arrepios de morte.
O meu pai, que observava pelo canto do olho, parecendo distraído, dava uma gargalhada sonora, a que juntava uma ou outra frase engraçada e todos acabavam por rir.
Vezes sem conta este episódio se repetiu e outras tantas vezes nos fez rir com vontade, pelo engraçado da situação e pelo bom humor do meu pai, que se divertia com as coisas mais simples.

13/11/2007

Sem limites...

Sonhava-se sem limites.

As profissões passaram a não ter sexo. As mulheres podiam ser médicas, advogadas, juízes, motoristas de táxi, etc. Tinham queimado o soutien como acto simbólico, mas todos os dias novas conquistas eram feitas. O que parecera um acto escandaloso e leviano, mostrava ser a ponta do novelo.

Os rapazes usavam os cabelos compridos, as roupas justas, as calças boca de sino. Modernices, cabeludos, o fim do mundo... diziam os mais velhos. Os jovens apenas fugiam às convenções e passaram a criar, a olhar a vida com mais liberdade.

Não se escolhiam só os filhos para mandar estudar... as filhas começavam a ser olhadas como tendo direitos também. Casar deixava de ser destino obrigatório e único para uma jovem adolescente.

Não havia ainda escolas, nem transportes, nem posses para se pagarem estudos... mas o sonho começava a poder realizar-se, a tomar formas mais possíveis, a concretizar-se.

O meu sonho foi sempre o mesmo. Um sonho a que chamavam a

Chegaram os Beatles!

Tudo era novo. Tudo era diferente. Começava a brotar a criatividade e a irreverência.
Eu sonhava em tornar-me jornalista. Foi a profissão que mais desejei ter, durante muitos anos. Escrevia em diários, escrevia poesias, escrevia artigos que eram publicados em revistas menos famosas e jornais de província.
Um poema meu encheu totalmente a 1ª página do Jornal de Castelo Branco no dia de Natal.
A música enchia os meus dias e embalava os meus sonhos de poder vir a ser uma escritora.
Chegou a mini-saia. Todas as adolescentes usavam os cabelos compridos e lisos. Os discos e os gira-discos já não eram novidade. E chegaram os Beatles!
Rebentara a... revolução!

09/11/2007

Frio do Outono, calor do amor

Um dia de sol no fim do Outono.
O meu pai recebia os netos, talvez para o habitual almoço de sábado.
A Bagui, toda decidida, caminhava para casa, enquanto o Pedro se ficava pelo aconchego da mãe e do avô.
As dornas que serviram na vindima e estavam a lavar antes de voltarem para a adega, junto das videiras da latada, que esperavam a poda lá mais para o Inverno.
A seguir, o olival, os edifícios do lagar e da adega e bem ao fundo, parte da Serra da Gardunha, assistindo magestosa à mudança das estações.
A pressa da Bagui já se compreende.
A avó tinha sempre umas bolachinhas para "entreter a debilidade", como dizia o avô, que lhe deu um sorriso de orelha a orelha.
O Pedro vem muito bem trajado... calças de fazenda com vinco, camisola de lã e colete sem mangas. Não sei porquê, mas cheira-me a que são tricots feitos pelas vóvós!
Nesta varanda simples, sem luxos, vivemos muitas horas de boa disposição.
Aqui crescemos com o ar puro da Serra, o aconchego da nossa terra e o calor do amor.

Kubitchec de Oliveira

O presidente do Brasil vinha a Portugal e visitava o Fundão, penso que a convite do Jornal do Fundão, um semanário com tradições de luta antifascista.
Eu tinha então 13 anos, estudava interna no colégio de religiosas Doroteias, na Covilhã.
Nada sabia do Brasil, nem do seu presidente e muito menos do que representava o Jornal do Fundão na vida política da minha terra.
A verdade é que as Doroteias, freiras educadoras, iriam festejar a vinda de tão ilustre personagem à Covilhã, uma vez que era à porta do colégio que o carro do visitante parava e iniciaria o percurso a pé, até ao pelourinho, onde faria um discurso.
Resolveram escolher uma menina entre as alunas, que iria entregar um ramo de flores ao presidente brasileiro e apresentar os cumprimentos do colégio.
Foi cuidadosamente enfeitada a entrada, mandadas vir as alunas com o uniforme dos domingos e encomendadas as flores. Depois foi escolhida a aluna que iria entregar as flores.
Fiquei admirada quando me escolheram. Ainda hoje não sei qual o critério que seguiram.
Na hora da chegada da comitiva, fomos todas perfiladas à porta do colégio e eu fui colocada ao meio, com as flores nas mãos.
Durante a espera, todas as minhas colegas queriam saber porque fora eu a escolhida e eu, ingenuamente, quase lhes pedia desculpa.
Depois de grande espera, com muita gente amontoada nos passeios, lá começamos a avistar os carros a que as pessoas acenavam com entusiasmo.
Nervosa, endireitei as costas e pus o meu melhor sorriso.
Os carros pararam mais à frente do que o que tinha sido estipulado e a multidão correu atrás.
Eu fui empurrada pela rua acima, com as flores na mão e sem quase pousar os pés no chão, por aquela gente toda, que queria ver e chegar perto do presidente.
A meio da subida para o pelourinho, lá me consegui libertar e sair da torrente que seguia os visitantes. Tinha perdido as flores e encontrado duas amigas que tinham sido também arrastadas e vinham divertidíssimas.
Resolvemos aproveitar aquela pequena fatia de liberdade e ir ao café Montalto comer um bolo e beber um sumo. Juntámos o pouco dinheiro que tinhamos e fizemos um lanche maravilhoso, com aquela multidão a fazer de cortina e o som dos discursos inflamados como música de fundo.
Por fim, lá resolvemos voltar para o colégio. Calámos a nossa aventura e fizemos alarde da desventura de termos perdido as flores e não termos conseguido apresentar as homenagens programadas.
Qual o meu espanto, quando no domingo seguinte, na 1ª página do Jornal do Fundão, lá estava a fotografia do presidente, a sua comitiva toda e nas mãos de uma das pessoas, o meu ramo de flores...
Vezes sem conta, nestes anos todos, dou por mim a pensar como teriam ido parar às mãos daquela pessoa, as flores que perdera nos empurrões pela rua acima.
Ainda pensei na hipótese de 2 ramos exactamente iguais... o que era bem difícil.
O melhor de tudo foi o lanche no Montalto, às escondidas das freiras.

Tempos de partilha

Apesar de ter vindo da aldeia sem um tostão no bolso, com ideias novas e muito trabalho, acabou por ser uma das pessoas mais importantes do Fundão, pelo seu poder económico.
A sua origem humilde e o seu bom coração faziam com que ajudasse quem tinha sido menos bafejado pela sorte - continuo a acreditar que a sorte também tem muita importância na nossa vida - e a ele recorria para empregar um filho, para ser fiador num empréstimo, para emprestar mesmo uma quantia que resolveria um momento de aflição.
Era um grande empresário já, quando tomei consciência da amizade que o ligava ao meu pai e da forma como ajudava os outros.
Um dia, andando muito doente com uma úlcera varicosa numa perna, que o fazia sofrer horrores, atendeu no seu escritório uma mulher que lhe ia pedir ajuda, como era hábito.
A mulher era muito humilde e para tentar agradar ao senhor que tinha a solução para o seu problema, começou por lhe perguntar pela saúde. Ele lastimou-se do seu sofrimento. Ela, ainda a tentar agradar, disse-lhe:
-Mas tem tão bom aspecto.
Ao que ele respondeu -Pois é, mas eu não me queixo do aspecto!

29 numa cama

Na quinta, o meu pai tinha um trabalhador rural que o ajudava há muitos anos e era quem orientava os outros, na sua ausência.
Era natural de Valverde, a aldeia onde nasceu a minha avó, mãe da minha mãe.
Quando vinham novos trabalhadores ou visitas à quinta, ele brincava dizendo que na sua casa dormiam 29 na mesma cama. As pessoas olhavam-no com surpresa, sabiam que era brincadeira, mas tentavam descobrir o que ele queria dizer.
Nunca sorria e continuava a afirmar que era verdade o que dizia. Na sua casa dormiam 29 na mesma cama.
Quando as pessoas mostravam vontade de saber como é que aquilo era possível, ele explicava:
- Eu sou Catorze, o meu filho também é Catorze... já somos 28, mais a minha mulher, somos 29.
Era um homem à moda antiga, como dizem lá no campo. Não é que já não haja homens honestos, humildes e fiéis àqueles para quem trabalham, mas havia uma ligação afectiva tão forte, que os interesses fundiam-se, parecendo que o principal interessado que a vinha produzisse ou o pomar florescesse era também o encarregado e não só o patrão.
Era habitual, para mim, ver o meu pai conversar com o Sr Catorze, analisando as decisões a tomar, numa harmonia e cumplicidade que transpirava não só respeito mútuo, mas também amizade.
Sinto imensa vontade de procurar em Valverde por esta e outras famílias que povoaram os dias da minha infância e deixaram marcas de sentimentos fortes e únicos.