23/07/2007

Em Maio

Cerejeiras em flor.

Quando a neve e a geada se despedem, rebentam as folhas novas, bordando a matiz as encostas da Serra.

Depois, com os primeiros raios de Sol a aquecer o ar, as cerejeiras florescem e enfeitam a grande sala que é a Cova da Beira, com magotes de pequenas pétalas rendadas, alvas e rosadas, numa festa para a vista e para o coração.

Mais algum tempo e transformadas em tapete macio, dão lugar ao vermelho vivo das cerejas, vergando com o seu peso os ramos mais frágeis, enchendo de cor o horizonte e anunciando a proximidade do Verão.

Quem somos...

Sempre que estou em cidades maiores e mais evoluídas do que aquela em que nasci, admiro e aproveito o que elas me oferecem de diferente, inspiro-me, revigoro forças, cresço.

No entanto, fica inalterável no carinho que dedico à minha, por mais que ela saia a perder na comparação.

Vou observando essa mesma característica nas pessoas que estão longe da sua terra.

Por mais pobres que fossem, por mais dificuldades que tivessem, querem sempre voltar, querem sempre poder fazer qualquer coisa por ela e as recordações que guardam dela, são sempre de um amor sem limites.

O que nos ligará para sempre ao lugar onde nascemos e crescemos?

O que nos faz ficar preso à paisagem que cercava a nossa casa, ao seu clima, às pessoas que conviveram connosco nos nossos primeiros anos, aos seus hábitos, até ao céu, ao Sol, à Lua e às estrelas que achamos sempre que têm outra cor e outro brilho?

O sabor do pão, da sopa, dos legumes e da fruta, que ouvimos tantas vezes referir, em qualquer lado, a propósito de coisa nenhuma, por pessoas que saboreiam na sua memória e sentem a diferença com o coração.

O cheiro dos campos, quando os eucaliptos volteiam com a brisa, quando as roseiras florescem e enchem o ar de doce perfume, quando se espalha no ar o odor quente do pão saído do forno que nos alimenta o corpo e o espírito, quando a chuva cai na terra seca em fim de tarde quente de Verão.

O nascer do Sol em tons dourados no firmamento e o seu esconder em laranja e vermelho de fogo.

A aragem macia e morna das manhãs de Primavera e o frio cortante e másculo que anuncia a chegada do Natal e nos recorda o conforto do abafo de lã e da lareira crepitante.

O cantarolar das rolas em árvore distante, o sussurrar da água que escorre de mansinho da fonte, o ladrar de um cão ao longe, guardando de estranhos a casa do seu dono, o cântico dolente de quem amanha o campo e deixa nele sangue e suor na hora em que as costas sentem o ardor do meio dia.

Existe em todas as terras, nos lugares mais esquecidos, no entanto o "nosso", tem um significado especial...

Será apenas um sentimento de posse, em que valorizamos o que nos pertence, ou será uma ligação visceral que nos faz sentir aonde pertencemos?

Quando saio de casa, vivo a partida com entusiasmo, mas quando regresso, o meu coração alegra-se e a minha alma aquieta-se.

A nossa terra, o nosso lugar, os nossos, permanecem dentro de nós e continuamos a amá-los, mesmo que tenham partido, que estejam distantes, que mudem, que deixem de existir.

Penso que são as nossas raízes que mantêm vivos os nossos ramos e alimentam as nossas flores e frutos, até os nossos espinhos.

Elas... somos nós.

22/07/2007

Fangio e...companhia.

O Manelito aprendeu a conduzir muito cedo. começou por ter um carrinho de pedais, depois um triciclo, depressa teve uma bicicleta e ainda não chegava aos pedais, já conduzia o carro.
Os meus pais viviam por cima da oficina e a minha mãe, certa vez, mandou o Manelito chamar o pai para almoçar. Ele foi, claro. O problema é que o pai não estava na oficina e ele, sem que alguém desse conta, (o Tó tomava conta dele, só que o Tó também gostava da bicicleta que andava a arranjar e distraía-se com frequência), pegou no carro e foi procurá-lo pelo Fundão. Teria 8 ou 9 anos.
Esticado para ver o caminho e chegar aos pedais, passou pelo polícia sinaleiro, que ficou mudo e quedo, de tão espantado.
Depois correu a avisar o meu pai, dizendo: "Oh Sr Salvado, olhe que eu até virei a cara para não ver..."
Por causa dessa mania, que os mais velhos tinham, de só poder conduzir quem tivesse carta, estávamos sempre dependentes. Para um miúdo como o meu irmão, isso era demais!
Num domingo, fomos os dois ao cinema (que Deus haja...). Tínhamos então 12 e 14 anos, no máximo. O meu pai, mandou-nos esperar à saída, pois voltava para nos buscar e levar para casa. Mas, como era habitual no Verão, todos os domingos havia visitas na quinta e o meu pai demorava-se. O Manelito, numa das suas decisões habituais, foi ao escritório, abriu a gaveta onde eram guardadas as chaves dos carros, tirou a do que estava estacionado à porta e chamou-me. Entusiasmado com as aventuras que vira na matinée, talvez, ali vamos nós direitinhos à quinta.
Em frente à adega, a meio do caminho, estava a brigada de trânsito. Mandaram-nos parar e quando viram as nossas caras, paralisaram por segundos. Então, enquanto um foi com o Manelito à adega telefonar para o meu pai, o outro, ficou junto do carro a guardar-me (imaginando que eu seria capaz de tudo... sei lá!).
Eu quase morri de medo... do meu pai.
O meu irmão foi dormir com os polícias à pensão onde estavam alojados, para não ir para o chilindró- já então funcionavam as cunhas- e na 2ª feira de manhã foi presente em Tribunal.
O meu pai teve de pagar uma multa elevadíssima, eu ouvi sermão e missa cantada e o Manelito foi o herói do dia, no colégio, por ter ido dormir com os polícias, ou seja, por ter sido apanhado a conduzir sem carta e... preso!

21/07/2007

O Zé e o Paulo.

Já falei muitas vezes no Zé da Mimila.
Aproveito a fotografia em que está com o meu pai, para lembrá-lo e ao seu irmão Paulo, que também já partiram. Cedo demais, infelizmente.
Ainda pequeno, o Zé ia a casa de umas pessoas amigas da mãe, a Mimila, e o Paulo, o irmão mais novo, quis ir com ele. A Mimila fez as recomendações da praxe... Porta-te bem, faz o que o Zé mandar e se te oferecerem lanche, aceita só quando o Zé disser. Não sejas gulotão!
Lá foram...
As senhoras da casa ofereceram um bolo com um aspecto de crescer água na boca, mas o Zé respondeu: "Não quero, obrigado".
O Paulo cumpriu com as determinações e quando lhe ofereceram o bolo, embora com voz baixa, agradeceu e não aceitou.
Pela segunda vez as senhoras ofereceram doces. O Zé estava determinado a sofrer e a fazer sofrer! Parecia de propósito. O temido "Não quero, obrigado", fez-se ouvir. E o Paulo, com dificuldade, repetiu o sacrifício.
Na terceira vez, antes que o irmão dissesse que não, olhou para ele e disse: "Oh Zé, quando é que dizes para eu aceitar?"
Estão agora a sorrir connosco, tenho a certeza. Um beijo.
Um beijo também para a Maria Eduarda, que tanto ama o Paulo e tanto nos tem amado a todos , por causa dele.

20 de Julho

Uma pequena homenagem ao meu pai, no dia do seu aniversário.
Aqui, na quinta que tanto adorava, com o Zé, a quem considerava como um filho, um irmão e um amigo.
A terra abençoada e generosa, o ar puro e a satisfação de uma vida cheia.
Levantava-se às 6 da manhã, todos os dias e até à meia-noite, nunca mais parava.
Os trabalhadores do campo chegavam às 8 horas e depois de dar as ordens, tomava então o pequeno almoço.
Costela do porco (nome dado ao entrecosto) frita com ovo estrelado, pataniscas de bacalhau, peixe em molho de escabeche, eram os pratos que preferia para acompanhar com uma caneca de café.
Era bem disposto por natureza.
Contava anedotas como ninguém. Mesmo a mais sensaborona, contada por ele, passava a ter graça. Acrescentava-lhe sempre uns pontinhos que faziam a diferença. Se a anedota não tivesse graça, as suas gargalhadas, no final, faziam rir as pedras.
Mas era muito distraído, muito esquecido.
Um dia, deu boleia a um amigo que precisava de ir a Lisboa. A pobre criatura esperou na hora e no sítio que tinham combinado para o regresso, mas o meu pai não aparecia. Depois de muitas horas, desesperado, lembrou-se de telefonar para o Fundão, donde o meu pai o atendeu...
Era procurado constantemente por quem precisava de um favor e a todos dizia que sim. As freiras duma Instituição que recolhia meninas sem família, pediram-lhe se lá mandava a camioneta, para fazerem a mudança para o hospital, onde ficariam instaladas até fazerem as obras no edifício. Claro que concordou... só se esqueceu que tinha de ir a Coimbra!
As freiras e as suas meninas trouxeram para a porta mobílias, roupas, tarecos e ficaram à espera. Ao almoço comeram pão, sentadas nos caixotes, ao lado do fogão. Telefonaram mil vezes na esperança de terem alguma novidade. Ao jantar já não tinham pão, nem força para voltar para trás, nem camioneta para fazer a mudança!
Às 10 horas da noite, o meu pai chegou de Coimbra, cansadíssimo. Quando lhe contámos dos telefonemas das religiosas, comeu a correr e foi ele mesmo fazer a mudança, trabalho que os empregados não tinham feito, dizendo que o meu pai não tinha deixado ordens para isso.
Dizia que não ia ao cinema porque não estava para pagar para dormir mal... Então levava a minha mãe à entrada e enquanto ela via o filme, ele trabalhava no escritório ou dava aulas. Já se imagina o que aconteceu... Acabado o trabalho, foi para casa. Vestiu o pijama a pensar que a minha mãe estava na cama e só então viu que ela não estava... que se esquecera dela.
Encontrou-a a meio do caminho, acompanhada por um casal amigo, furiosa por ter esperado uma boa hora.
As nossas lembranças estão tão vivas como no primeiro dia. Que saudades!
Feliz aniversário, pai!

15/07/2007

O par de... pescadores!

Mudar de ares fazia bem às crianças...
Como viviamos todo o ano perto da serra, o meu pai ia levar-nos à Nazaré, onde alugava uma casa no mês de Agosto, para apanharmos ares e banhos de mar.
Ele voltava para o Fundão e ia passar os fins de semana connosco.
Trabalhava muito para não nos faltar nada.
A ideia de nos vestirem como os nazarenos e de nos tirarem fotografias, não sei de quem era, mas penso que havia um fotógrafo que fornecia as roupas e fazia as fotos para as pessoas levarem de recordação. Outros tempos... agora toda a gente tem câmara de filmar!
Aqui parecemos mesmo os bonecos de loiça, que as lojas da beira mar vendiam aos turistas.
Bochechudos, com boquinha de passarinho, trajados a rigor, pés descalços, com todos os pormenores acautelados.
Veja-se por exemplo a mão do Manelito, dedo polegar na cinta... não é pouca coisa! E o barrete de pescador ao ombro?
Não parecemos lá muito animados, ou então... é concentração!!!
O meu irmão, antes de entrar para a escola, andou na D. Celeste, uma senhora que cuidava de crianças, onde brincava e aprendia já qualquer coisa. Eu também quis ir e ele levava-me pela mão, sem se descuidar nunca dessa sua tarefa.
Um dia, o Zé da Mimila encontrou-nos e falou-nos carinhosamente. À frase, "Olá Mimi, onde vais?" o Manelito respondeu: "Oh Zé, deixa-a lá, que ela vai muito rabugenta com o sono!"
Outra vez, cruzou-se com uns miúdos da sua idade, que andavam em zaragata. Primeiro pegou em mim, sentou-me no banco do jardim onde me mandou esperar e foi a correr meter-se na zaragata! Bons tempos!

14/07/2007

Manelito

Brincar na rua era possível. E esta era uma das principais ruas do Fundão, junto dos campos onde foi traçada a avenida. Ao fundo está a Auto-Transportes. Parece que foi há muito tempo, no entanto os carros e os prédios é que se multiplicaram depressa demais.
O carrinho de pedais já fora substituído e eu olhava a bicicleta com olhos maravilhados.
Era o meu irmão mais velho, o meu herói. Era sempre ele que tinha aquelas coisas fantásticas. (Além disso, não lhe atavam borboletas no alto da cabeça.)
Ele é que não gostava muito da proximidade da "miúda" e todas as formas eram boas para me mandar para casa. Muitas vezes a choramingar, pois tinha a mão lampeira.
Eu usufruía das "máquinas", quando ele se fartava, quando ganhava outras mais modernas. Por ser rapariga, davam-me tachinhos e roupinhas para as bonecas...
Era apaixonado por carros. Um dia deram-lhe um cavalo de balanço. Arrancou-lhe o rabo de sisal e encheu-o de água, dizendo que estava a meter-lhe gasolina. Era de papelão moldado, abriu-se logo em dois...
O meu pai foi viajar e trouxe-lhe um carro em miniatura, de metal pintado.
Quando pensaram que estava entretido com o carrinho novo, foram dar com ele a martelar o carro e a gritar:"Não sou capaz de estragar esta porcaria!". Estava habituado a ver o que tinham dentro, a tirar-lhes as rodas, enfim... a ver bem como eram.
Cedo aprendeu a conduzir carros a sério e a conhecer tudo sobre eles. Eu acabei por me refugiar nos livros que alimentavam a minha imaginação e me faziam companhia, sentindo saudades das personagens das histórias, quando estas chegavam ao fim. O Tonô, que chegaria à família por último, tinha a sua preferência na música.
Todos continuamos com os mesmos hábitos...

O meu cabriolet

Lá atrás, um carro mais moderno que o Balila... Vejo agora que este também tem a tal plataforma para subir. Pela minha idade, não era aquele que eu recordava, nem este sequer.

O carrinho era herança do meu irmão Manelito. É desta forma que passam as "manias" nas famílias!
Duvido que já soubesse andar em pé, no entanto já pegava no volante com estilo. Talvez me parecesse um carrinho de bonecas ou um ringue, objectos mais próprios para meninas... a verdade é que estou toda contente.
Ainda hoje tenho a mesma paixão por descapotáveis.
Os brinquedos do meu irmão chamavam-me mais a atenção do que as minhas bonecas.
Andar de carrinho, sempre era outra emoção!!!
Não podia afastar-me da porta da garagem, porque ainda era muito pequena. Não ter carta de condução não era problema, como contarei mais à frente...
Uma lembrança bem viva é o ódio pelos laços que me repuxavam os cabelos.
As mulheres começam desde cedo a sofrer por causa da aparência...

11/07/2007

Um mimo à nossa mãe

No Dia da Mãe, talvez, festejado então a 8 de Dezembro, quando o frio começa a sério!
.
O Tonô e o cuidado que ainda mantém... sempre um mimo para dar.
À sua maneira, sem grande espalhafato, como se tudo fosse a coisa mais natural do mundo.
A verdade é que está lá sempre, na hora certa, com uma dádiva e um sorriso.
Não foi só uma frase escrita no quadro, aos 10 anos de idade, com orientação da professora de português... foi um sentimento transcrito pelo giz, na ardósia, adivinhando uma forma de estar na vida em que o amor encontra o verdadeiro significado.
Amor pela sua terra, pelos seus, pela profissão, pelos amigos, pelas artes, pelo que é belo, pela vida...
Custe o que custar, pois nem sempre amar é fácil!

10/07/2007

Eu e os meus irmãos

Plantas do mesmo alfobre...
O mês de Agosto na praia da Nazaré, para onde se fugia do Verão.
Na Beira Baixa, onde até o clima é hostil, as plantas exigem muito cuidado para crescerem. No Inverno, é o frio, a geada, a terra que o gelo deixa dura como granito.
No Verão é a seca, que o sol, como aço de espada, deixa em ferida.
Nós, como elas, fomos cuidados, acarinhados, regados como frágeis plantas de alfobre, que se transformam em árvores, capazes de resistir aos ventos e aos temporais...