08/04/2008

Amália

Diziam, no Fundão, que Amália Rodrigues tinha lá nascido. Lembro-me de ter lido em qualquer lado, que ela era Lisboeta. No entanto o meu pai afirmava que a grande fadista vivera com os pais e irmãs no Largo da Fonte das 8 Bicas, numa casa com dois degraus de granito, que me mostrava cada vez que lá passávamos.
Contava também, que a via muitas vezes em Alcântara, quando esteve na Marinha. Podia não ser ela, pois as irmãs são muito parecidas, mas sentia muito orgulho dessa proximidade com a sua Diva.
Na casa da quinta, no beirado por cima da janela do quarto dos meus pais, havia um meio cano que encaminhava as águas da chuva. Todos os anos, na Primavera, um passarinho fazia ali o ninho. Começava a cantar assim que o sol ameaçava aparecer no horizonte.
Por isso o meu pai baptizou-o com o nome de Amálio, rindo em gargalhada franca, em que mostrava os dentes brancos e certinhos, de meter inveja.
Era o meu pai que nos acordava todas as manhãs, nos dava o pequeno almoço e nos levava para o colégio, enquanto a minha mãe ficava mais um bocadinho na cama. Ela sempre gostou mais de fazer serão, ao contrário do meu pai, que mal se sentava, adormecia.
Então o passarito, logo de madrugada, cantava que se desunhava. Só que a minha mãe queria dormir...
Depois de muitos protestos sem resultado (o Amálio não entendia essas coisas de ficar na cama a "dormir à pressa", como nos dizia o meu pai quando lhe pedíamos mais uns minutinhos na hora de levantar) a minha mãe pediu-lhe para deitar abaixo o ninho do incómodo hóspede. Pediu várias vezes, mas o meu pai, entre uma gargalhada e uma resposta de "está bem", ia adiando o sacrifício, até que o Amálio partia de novo com a sua prole de tagarelas e deixava os inquilinos descansar.
Plantei uma árvore no jardim desta casa e também aqui um passarinho vem sempre na Primavera fazer ninho. É mesmo em frente do meu quarto e todas as manhãs o ouço cantar e conversar com a sua eleita e os seus rebentos.
Ontem estava um temporal terrível e eu só ouvia a chuva bater na grade da varanda. O meu Amálio estava caladinho e aninhado, calculo eu, no fundo morno do seu ninho.
Fez-me falta a sua cantoria.
Hoje, voltou a sorrir o Sol, embora tímido e em aparece-esconde. De novo o Amálio me fez companhia, cantando bem afinado para me dar forças para ir trabalhar.
O meu amor por ele foi uma das razões porque o meu pai sempre se fez esquecido do pedido de despejo. Quem sabe não me seguiu desde os tempos da quinta, através dos seus filhotes e dos filhotes deles? A Natureza é sábia e encaminha os seus filhos como mãe cuidadosa. Obrigada Amálio. Volta sempre.

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